Um tédio sedutor embalou os meus primeiros dias na Índia… Chás à moda inglesa e bolos à moda francesa eram o refúgio perfeito do caos das buzinas e multidões do mundo de fora. O sabor do doce conhecido era reconfortante. O medo do novo se escondia entre as tramas do guardanapo sobre a mesa.
Mas ao chegar em casa, o olhar do marido era de quem via os ingredientes ocultos daquela receita e, antes que ela desandasse, sugeriu: “Vamos passear por Old Delhi?”
A aglomeração de riquixás, gente, bichos e lixo no centro antigo da capital indiana era tudo o que eu não queria. No entanto – e ele já sabia –, era também tudo o que eu precisava.
Descemos do metrô em Chandni Chowk. Enveredamos por um labirinto de letreiros luminosos e vendedores ambulantes. Os aromas vindos de enormes tachos de ferro sobre fogareiros dominavam os sentidos: grãos-de-bico borbulhavam em manteiga clarificada e especiarias; pães eram assados sobre chapas em brasa; samosas, parentes próximas do nosso pastel, eram fritas na hora; bojudas panelas de alumínio fundido aqueciam biryanis, o risoto indiano.
Admiradores da culinária de rua pelo mundo, sucumbimos rapidamente à tentação. E foi assim que cominho, cúrcuma, coentro, gengibre, bem como outros temperos menos conhecidos para nós brasileiros – manga verde em pó, sementes de nigella, grãos de mostarda –, passaram a dar mais sabor à minha vida. Apimentaram a minha relação com a Índia. Era o fim do tédio, pois havia ali todo um mundo a ser descoberto por meio da culinária indiana!
Quando o assunto é alimentação, pimenta e higiene parecem ser a preocupação comum a todos que chegam à Índia. Acreditar que estamos mais seguros comendo em hotéis e restaurantes pode ser um erro. Nas cidades, a maioria dos indianos depende da comida de rua para sobreviver. Por essa razão, a alta rotatividade garante alimentos frescos, e a concorrência, a qualidade e o sabor.
Pequenos males digestivos são comuns pela falta de higiene presente em todo lugar. Mas na capital do país, a gastroenterite, conhecida como Delhi Belly, é capaz de acabar com a alegria de qualquer viajante. Ela parece ocorrer de acordo com a sorte, sistema imunológico e, como bem observam os hindus, com o karma de cada um!
Em relação à pimenta, o erro comum é buscar abrigo em pizzas e massas. Os molhos que tendem a ser parecidos em todo o mundo, são considerados bland pelos indianos, ou seja, sem graça. Problema que resolvem, facilmente, acrescentando uma pimentinha…
É por isso que alguns dos menos aventureiros escolhem passar seus dias na Índia vivendo de bolachas e pães, entretanto acabam por perder um dos lados mais fascinantes e ricos desta cultura. O que os indianos comem, de norte a sul, varia de acordo com as condições climáticas, do terreno e os produtos de cada região. O que não varia é a criatividade, o requinte no preparo, a paixão pelo alimento, por compartilhá-lo e a importância dada a ele, que vai do aspecto nutricional ao religioso.
O dal é o que mais se aproxima de um prato nacional indiano, pois está presente em todas as mesas. Em aspecto, assemelha-se ao feijão brasileiro, mas pode também ser feito com outras leguminosas como lentilha, grão-de-bico e ervilhas. No sul, é acompanhado por arroz. No norte, por pão. As receitas são diversas, sendo algumas mais picantes do que outras, mas a complexidade de sabores nunca decepciona.
Um molho de iogurte, conhecido como raita, normalmente acompanha os preparos mais apimentados, pois é ele que trará algum alívio quando o ardor for demais. Outra alternativa é tomar um lassi, bebida também à base de iogurte que pode ser salgada e com temperos, ou doce e com frutas. Beber água só piora a sensação de ardência: a capsaicina, responsável pela pungência da pimenta, não é solúvel no líquido e se espalha ainda mais pela boca, ao passo que a gordura presente no iogurte ajuda a dissolver a substância.
Uma boa introdução à comida indiana seria, então, os pratos que contém molhos à base de iogurte, creme, oleaginosas como amêndoas e castanhas-de-caju, e ghee – a manteiga clarificada.
Típico do norte da Índia, e uma deliciosa opção vegetariana, o shahi paneer é feito de pequenas porções de um queijo tipo ricota – o paneer – em um molho à base de creme, iogurte, castanhas-de-caju e especiarias. Já para os carnívoros, o murgh malai tikka – frango desossado em pedaços e marinado em iogurte, queijo, coentro e outros temperos – é assado em espetos dentro do forno tandoor, também da região norte, que confere à carne um peculiar sabor defumado resultante da alta temperatura à qual é submetida.
Para os aventureiros que querem provar da culinária de rua, o pani puri – literalmente “pão d’água” – é uma espécie de bolinho de massa bem fina e crocante, recheado com água aromatizada com tamarindo e condimentos, coberto com grãos-de-bico e ervas frescas.
Mas é da Caxemira, uma terra de conflitos e extrema beleza natural, de onde vem meu prato favorito da culinária indiana: o rogan josh. Pedaços de carneiro, ou bode, são refogados em ghee e em uma mescla de temperos aromáticos que deleita o olfato sem agredir o paladar. É exatamente por meio do aroma que o cozinheiro habilidoso identifica os diferentes estágios da receita – cravo, cardamomo e canela, assa-fétida e folhas de louro têm o momento certo de entrar nessa sinfonia gastronômica.
A cozinha indiana também possui utensílios próprios a ela. Naquela tarde, o nosso passeio por Old Delhi terminou entre alguns deles, no mercado de cobre de Chawri Bazar. Ali, comprei uma handi, minha primeira panela indiana, e tive a impressão de a que minha cozinha e o meu coração, finalmente haviam chegado à Índia.