A China é um país cheio de belezas e mistérios para nós ocidentais. É um lugar com uma cultura milenar riquíssima e, se pensarmos bem, fazem somente 100 anos que o Império foi deposto. Em termos de história, esse tempo é nada.
Sempre escrevo que podemos levar o progresso de concreto e tecnologia a qualquer parte do planeta, se temos dinheiro e idéias inovadoras, mas a sociedade não consegue ser moldada assim. O inconsciente popular, os hábitos arraigados por séculos, as regras sociais que se repetem e perpetuam são muito mais complicadas de acompanharem o desenvolvimento mundial.
É algo muito ambíguo, eu sei. Mas o ser humano tem dessas coisas…
E a China não foge a regra. Pois além de ter pouquíssimo tempo de troca de regime de governo, nesses 100 anos muitas coisas aconteceram e colaboraram para essa sociedade ser tão peculiar, como é hoje.
A situação da mulher
Por mais altos e baixos que a política e seus governantes tenham imposto a esta sociedade, o povo chinês nunca deixou de seguir basicamente (mesmo sem levantar bandeiras) a filosofia de Confúncio, que tem muita coisa interessante e, em alguns casos, parece que foi escrita para os dias atuais. Só que essa filosofia é extremamente patriarcal e hierárquica.
Dentre as ‘ Três direções e cinco virtudes’ pregadas pelo Confucionismo, uma delas diz claramente que as esposas devem ser submissas aos maridos. E, através da história milenar dessa sociedade isso foi tido como ‘normal’. Na realidade casos de violência doméstica ainda são classificados como ‘problemas privados’ e quando uma mulher vai à polícia denunciar um abuso pelo marido/companheiro, sempre recebia a resposta que isso era um ‘problema doméstico’, que não era caso de polícia!
Outro fator que faz com as mulheres se calem, principalmente fora dos grandes centros, é que a lei de divórcio ainda é muito dura para as chinesas. São necessários grandes e exaustivos acordos para que a mulher não saia do casamento com menos do que entrou!
Mas isso está mudando…
Ao menos um importante passo foi dado pelo governo chinês esse ano: desde 1° de Março de 2016, foi promulgada a primeira ‘Lei anti violência doméstica na China’.
Hoje, um policial não poderá mais dar a resposta citada acima, já que agora isso é sim, um problema do Estado.
Mas muito ainda tem que se lutar pela educação e mudança de paradigmas da sociedade como um todo. As próprias mulheres precisam assumir e defender seus próprios direitos e lutar por eles, que as conquistas sejam realmente colocadas em prática e façam a diferença em suas vidas.
Num relato que li, numa reportagem sobre o tema, contava sobre uma moça que foi procurar uma instituição de apoio a mulher no interior da China pois o marido era muito violento e ela queria se divorciar. A profissional perguntou se ela queria se divorciar por conta da violência sofrida e a moça respondeu: “Não! quero me divorciar pelo ‘gênio’ dele que é muito instável, o resto são coisas do casamento”.
Dessa forma podemos perceber que o trabalho será árduo e longo. A principal função dessa lei hoje, além da proteção à mulher, é mostrar que violência doméstica não é normal, nem direito adquirido pelo casamento. Que o homem que agride a mulher está cometendo um crime.
Mas se pararmos para analisar friamente, a questão dos direitos humanos e os da mulher, em especial, passam por situações semelhantes em quase todas as sociedades que conhecemos. E a luta é de longa data, e as conquistas são muito mais lentas do que deveria ser. Só que na China as coisas estão começando a acontecer agora.
Nos locais mais desenvolvidos, onde há mais acesso a informação, é que as coisas acontecem, se fomentam e se vai em busca de soluções. Mas a China é imensa e há locais em que as pessoas ainda vivem num ‘mundo à parte’. Acho que no Brasil também temos esse tipo de problema… locais onde a informação e a aplicação das leis (sejam elas qual forem) ainda são considerados algo utópico. Infelizmente.
Como é a lei
Essa lei visa combater a violência doméstica focando na prevenção, com a combinação de educação, correção e punição. As escolas, organizações sociais, comitês de moradores, hospitais e empresas são obrigados a notificar qualquer caso/suspeita de violência contra a mulher, caso contrário também serão responsabilizados pelo ato de violência.
A lei proíbe qualquer forma de violência doméstica, incluindo abuso psicológico, e ajuda a agilizar o processo de obtenção de ordens de restrição.
Nem tudo são flores e perfeição, pois a questão do abuso sexual ainda está nebuloso nessa lei, dentro da concepção de ‘relacionamento íntimo’.
De acordo com a ‘All-China Women’s Federation – 中华全国妇女联合会’, cerca de um quarto de todas as mulheres sofreram violência no casamento, embora apenas 40.000 a 50.000 reclamações são registradas a cada ano. Dos casos relatados no ano passado, quase 90% eram por abuso cometido pelos maridos/companheiros.
Isso é um começo
Sabemos que ainda há muita luta pela frente, mas um passo importante já foi dado. Agora é acompanhar as ações que vão garantir a aplicação e assimilação dessa lei pela sociedade como um todo.
No primeiro dia de implementação da lei, duas mulheres foram dar queixa de violência na corte de Beijing (Pequim). Uma delas era uma senhora de 61 anos, que disse sofrer abuso pelo marido por 30 anos, e agora ela não suportaria mais.
Que todas as mulheres chinesas possam incorporar essa conquista e continuarem a luta pelos direitos básicos que todos nós deveríamos ter, sem luta, sem ações judiciais, simplesmente porque é direito!
Até a próxima!
3 Comments
Muito bom seu texto Christine. Em agosto eu estarei na China e vou apresentar um Fórum justamente sobre esse tema Violência Doméstica, representando o Brasil no concurso de beleza internacional Mrs Universe(Missis Universo).
Olá Jakelini,
Obrigada pelo comentário.
Muito sucesso na China e manda notícias desse encontro.
Abraço.
Christine Marote vou me mudar pra China em Abril, la pra primeira cidade que vc encarou;Chang Chun.
Estou devorando todos seus textos mas esse nao pude deixar de comentar.Engracado que agora com a previsao de me mudar cada vez que conto ouco de tudo sem pe nem cabeca.Mas como advogada no Brasil confesso que nao viver num estado de direito foi uma das preocupacoes mais importantes pra mim.E como quase tudo que eu pensava pode cair por terra ja que como vc trouxe existe um esforco de mudar a “tradicao” da violencia contra a mulher.Muito interessante tua reflexao sobre os avancos contra esse tipo de violencia, tao lamentavelmente presente no nosso pais querido.Uma curiosidade que ainda nao tive satisfeita foi saber como funciona a justica dentro de uma ditadura comunista. Sei que o assunto e amplo e nao deve ser simples de adentrar mas fico curiosa em saber por exemplo se existe direito de defesa garantido a todos pelo menos em tese e tal.Um abraco e obrigada por existir e acalmar meu coracao nessa nova aventura;)