A maioria dos leitores já sabe que trabalho com Direito Humanos e adoro o que faço. Uma das coisas incríveis desse trabalho é o quanto de coisas novas aprendemos e de pessoas incríveis conhecemos.
Por conta da minha área de atuação eu sempre me julguei uma pessoa esclarecida e antenada com o mundo e suas boas causas, mas foi em um curso de Formação de Jovens Lideranças para o Controle Social do SUS no âmbito do HIV e AIDS, cujo tema já abordei aqui, que eu descobri que sabia muito menos do que imaginava sobre questões de gênero, orientação sexual e transexualidade; foi quando me dei conta do quanto eu me identifico com esse público tão discriminado!
A medida que fui convivendo com elas durante o curso e depois dele, pude provar um bocadinho do mundo delas; de sua doçura e do fel dos outros. Foi assim que tomei a causa como minha própria, e por isso acabei sendo convidada para abrir um evento de saúde da população transexual da região sul e para ser jurada de um concurso de miss trans, na cidade de Curitiba.
O evento com as misses foi lindo, super bem organizado e extremamente emocionante. Confesso que no começo fiquei um pouco confusa sobre a pertinência política do concurso de miss trans. Tinha um pouco de preconceito a respeito, mas então me dei conta que isso era muito mais do que um concurso de beleza. Era um libelo do empoderamento dessas mulheres e do reconhecimento público de sua transição. E vai além! É um fôlego de vida. Um momento de ser tratada de uma forma como a maioria delas jamais sonhou.
Naquela noite tudo (ou quase tudo) era possível. Tomar champanhe em uma limusine rosa de oito portas, ser recebida em uma grande festa com um tapete vermelho à sua porta, e ser aplaudida, aclamada e reconhecida como mulher.
Talvez possa parecer muito pouco para nós, mas para pessoas que tornam-se centros de polêmica até por conta de que banheiro usam, dá para imaginar o quanto ter um momento de glamour, amor e respeito, significa.
O desfile das meninas começou com a roupa casual, seguido pela demonstração dos trajes de banho. Para quem tem a visão equivocada de que toda trans é periguete, atirada ou hipersexualizada, a primeira quebra de paradigma: As meninas desfilaram com um maiô estilo vintage, super comportado e careta.
Achei bem legal o conceito. Depois desfilaram completamente divas em vestidos vaporosos e cheios de brilho. Me senti no tapete vermelho da entrega do Oscar. Além das misses, várias artistas apresentaram shows de dança e música, e até ventriloquismo, mas a bem da verdade o que mexeu com meus sentimentos foram os discursos.
Algumas delas eram extremamente articuladas e politizadas, e tinham a plena consciência de que todo glamour diante dos nossos olhos, nada tem a ver com a realidade das pessoas trans no Brasil.
Nos bastidores com as meninas, ouvi dizer que uma semana antes do concurso, uma das garotas foi assassinada, e que na tarde do concurso a amiga de uma delas se suicidou. Não é pra menos, a dor da discriminação corta como navalha.
Quando eu sofri transfobia
Na noite do desfile, após me despedir das candidatas que foram ao evento de limusine, me uni às outras trans para irmos ao evento. No posto de gasolina ao lado do hotel, cerca de dez taxis vazios aguardavam clientes. Ao nos ver chegar começaram com risadinhas abafadas e comentários maldosos, e para piorar, se recusaram a nos levar.
Eu então fui falar com o gerente. Expliquei que íamos a uma noite da gala, que estávamos todas em trajes de festa e que um ônibus seria inviável. E o tal gerente nem levantou os olhos da revista que folheava para me olhar.
Nada funcionou, apelamos para a lei, para a justiça, para o bom senso, para o respeito com as senhoras idosas mas nada adiantou. Pedi gentilmente, mas com todas as letras, para que ele olhasse pra mim e ele respondeu um lacônico e gratuito não, na minha cara.
Perguntei com voz trêmula o que eu havia feito para que ele me tratasse daquela maneira tão hostil e ele me respondeu na lata: Nasceu!
Ali tive uma noção minúscula do que essas pessoas vivem todos os dias. E foi de uma dor que não quero esquecer. Machucou muito, mas não esquecer o que senti é uma forma de ressignificar a dor delas em mim.
A dor emocional não foi tudo. Naquela noite senti-me como uma presa. Era possível sentir “o cheiro” do perigo eminente. Alguns daqueles taxistas tinham sangue nos olhos.
Liguei chorando para desabafar com alguns amigos. Uma amiga querida disse que odiava o termo fobia, porque quem discrimina não tem fobia, tem ódio e maldade no coração, quem tem medo, são elas, (naquele caso nós) ela disse.
A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 30 anos, em contraponto à uma média nacional de mais de 80 anos para pessoas cisgêneras (cuja identidade sexual concorda com seu sexo biológico designado).
Tenho vergonha de dizer, mas o Brasil é hoje o país que mais mata pessoas trans em TODO O MUNDO.
Ficamos horrorizados quando fundamentalistas islâmicos relacionados a grupos terroristas, atiram gays de cima de prédios por sua orientação sexual, mas aqui no Brasil, bem diante dos nossos olhos, mulheres trans são torturadas e assassinadas todos os dias.
De acordo com a Transgender Europe, uma organização não governamental europeia, “somos”os responsáveis por 51% dos crimes mortais em todo o continente americano.
Fora a violência física, ainda há a brutalidade das agressões sociais e psicológicas as quais são submetidas diariamente.
Por conta de tanto preconceito, é muito difícil para uma pessoa trans ou travesti finalizar os estudos ou conseguir uma posição profissional de destaque, mas isso há de mudar.
De acordo com a ANTRA, ainda existem cerca de 90% de mulheres trans na prostituição, mas 2015 foi o ano em que mais pessoas trans se inscreveram para participar do ENEM (o direito ao uso do nome social foi um dos maiores motivos disso acontecer veja aqui ) uma mulher trans, Simmy Lahat, assumiu a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República , Luma Andrade, travesti e doutora foi cogitada para o cargo de reitora da universidade pública do Ceará (embora lamentavelmente, ao final do processo tenha sido preterida). Isso pode ser o começo, mas não tão fácil assim.
Estamos vivendo um momento de recrudescimento dos direitos humanos no Brasil. O estado laico tem sido constantemente ameaçado e a educação tem sido golpeada repetidamente por fundamentalistas inconformados com os avanços alcançados por populações tradicionalmente marginalizadas.
O debate sobre questões de gênero foi compulsoriamente retirado das escolas, o estatuto da família exclui do conceito de família qualquer combinação que não seja: papai, mamãe, filhinha. Famílias gays para o nosso país não são famílias, netos criados por avós, sobrinhos por tias ou crianças adotadas por pessoas solteiras também não são família. Então cuidado! Pode ser que você descubra que nem família tem mais. Li em dados recentes que o Brasil é o quinto país com maiores índices de violência contra as mulheres, um dos piores países do mundo para a juventude e uma das nações que mais assassina jovens negros em todo o mundo.
Não sei como chegamos a esse nível de intolerância e preconceito, mas tanta violência me assusta. É por isso que me uno às minhas irmãs trans clamando para que no futuro, tenhamos de volta nosso país amoroso, solidário e alegre.
Por isso, que lá no início disse que ter essas meninas aguerridas na passarela não é pouco. A mutilação, os assassinatos e suicídios nao tirou delas a capacidade de lutar por seus direitos. E ainda lutam de batom, salto quinze e o cabelo impecável.
Eu desengonçada que sou, pego emprestado um pouco de glamour e purpurina a essas meninas e com teimosia e resiliência me uno a elas em uma única voz:
#NenhumDireitoaMenos
E assim como elas mesmas dizem, “a gente samba na cara da sociedade”, porque tudo que se quer é viver e ser feliz sendo quem a gente é.
Devo esse mundo mais humano à minha filha e essa felicidade às minhas irmãs menininhas.
Entenda um pouco mais sobre o assunto acessando aqui.
26 Comments
Parabéns pelo texto, pela reflexão e pela luta diária! O avanço só é possível com a união, vamos juntas! #nenhumdireitoamenos
Juntas por um mundo onde o preconceito e a discriminação sejam apenas uma história antiga e desbotada :))
Obrigada pela visita
Fabi me sinto muito feliz por existir pessoas tão comprometidas com seu trabalho e que fala das pessoas de uma forma tao linda e humanizada sem distinção de raça ou sexualidade, que vc e sua postagens sirva de exemplo pra muitos que ainda ñ vê que evoluimos e hj ja ñ se permite mais nenhum tipo de discriminaçã. Mil beijos pra essa pessoa maravilhosa que vc é meu anjo.
Eu que sou feliz por ter o privilégio de conhecer uma pessoa tão inspiradora como você, que me ensina tanto! Obrigada
Ótima matéria Fabi. Infelizmente a sociedade hipócrita tem sido intolerante, e com o ódio tem assassinado muitas mulheres principalmente as trans, travestis e lésbicas. No meio de todo esse horror precisamos seguir resilientes e esperançosas de que as coisas irão mudar pra melhor ! Seguimos juntas <3. Transfeminismo muda o mundo! #vaitertransim
Queridaaaaaa, é bem isso! Transfeminismo é um amor revolucionário!
Obrigada pela visita! Venha mais :))
Lindo texto. Precisamos urgentemente construir um mundo mais solidário em que todos tenham seus direitos garantidos e respeitados !! beijo grande
Verdade, e sei que você é uma dessas pessoas que trabalha muito por isso, né? bjs bjs
Refkexao que permite entender um pouco mais o mundo trans, quebrar paradigmas e preconceitos que nos fazem discriminar sem ao menos conhecer a realidade dessas guerreiras. Parabéns e obrigada por compartilhar.
E quantos preconceitos temos, não?! É um resignificar diário para que não acabemos nos tornando tudo aquilo que condenamos
Obrigada pela visita, Heliana, passe mais vezes 🙂
Fabi, que experiência a sua…. Trans por uma noite. E pensar naquele sujeito que nem te olhou e disse: “Nasceu”. Amar os inimigos, rezar pelos intolerantes…. Que trabalho! E que possibilidades temos de combater e reverter isso?? Pela atitude, pela educação, pela base que é diariamente minada pelos preconceitos, recalques, dissimulações. O que leva alguém a odiar sem conhecer? Felizmente nós temos também quem semeie amor. E muito. O Amor é Trans! Transformador! Transforma a dor…. Parabéns e que venham mais noites Trans!
Bem isso, né? O amor que ama o estranho há de ser muito mais forte do que o ódio que odeia o estranho :))
Fabi, lindo e emocionante o texto, para nós, militantes e ativistas um presente, pois tenho dito que o que mais precisamos é acumular forças, ter mais aliadas e aliados, ultilizar a comunicação, cultura e educação como ferramenta de desconstrução dos esteriótipos e das opressões de gênero, estamos juntos minha linda , vamos lutar pra mudar essa realidade, grande beijo!
Unidos e só unidos, conseguiremos fazer revolução
Unidos
Teimosos
E cheios de amor!
AHAZOU!!
Obrigadaaaaaa :)))
Parabéns por seu trabalho de registro jornalistico-antropológico Fabi Mesquita!muito bem fundamentado! E com o valoroso esclarecimento de como acionar amparo legal e psicológico. Gratidão por cuidar bem assim das questões que têm assolado as sociedades pelo mundo. Abração.
Ah querida, muito obrigada por tuas palavras tão gentis! Visite-nos mais vezes :))
Fabi como sempre impecável em suas colocações e sempre arrancando lágrimas dos meus olhos com estas postagens magnificas, parabéns pelo artigo e tenho que dizer apenas que concordo com tudo e assino embaixo… olha se você fosse homem e solteiro eu casava contigo hahaha grande beijo!!!
Jon <3
Oi amor! Muito obrigada! Sua opinião sempre é muito importante pra mim! E não atiça não que eu aceito! hahahaha poli e pan amor para o mundo hahaha
Obrigada meu amoooor! Adoro quando você visita a gente!
Parabéns pelo texto. Sonho com o dia que todas as pessoas serão respeitadas, independente da sua identidade de gênero, orientação sexual ou pela cor da sua pele, respeitadas, por serem humanas. Que existam mais pessoas como você que possa trazer mais gente à reflexão.
Obrigada querida, pouco a pouco estamos transformando o mundo em um lugar mais tolerante e melhor
Ola!
Tenho 21 anos, nascido em um corpo masculino, e estou com dificuldades de achar um médico. Gostaria de saber se posso tomar os hormônios femininos por conta própria até achar um médico ou não, estou muito desesperado, mesmo
Oi meu amor, primeiro de tudo fique calma e não se desespere, tá bom?
Olha só, fazer a hormonização por conta própria pode ser perigoso, então o ideal é achar algum tipo de apoio pra você. De que cidade você é? Vou tentar encontrar pessoas que possam te ajudar a transicionar sem trauma ou riscos para a sua saúde, tá bom, amor?
Antonio Maurício de Lisboa Portugal : quero dizer que estou aqui para dar a minha cara se for preciso para apoiar toda a mulher transxesual que sofre todo tipo de preconceitos estamos no século 21 chega de maltratar mulher transexuais têm transexuais que são muito mais lindas que mulher verdadeira eu adoro transexuais.