Desigualdades sociais em Myanmar.
Em geral, a vida de expatriada não é fácil. Mesmo que gostemos do lugar onde estamos e tenhamos uma boa vida e um bom emprego, sempre haverá a saudade da família, de coisas com as quais estávamos habituados, o choque cultural e as dificuldades do dia a dia com as quais temos que lidar, seja na Europa, América ou Ásia. Pode ser a dificuldade em se comunicar, em entender determinados hábitos locais, ou mesmo em resolver coisas do cotidiano.
Como eu já mencionei algumas vezes em artigos anteriores, Myanmar é um destes países que nos oferecem esses desafios. Nos últimos meses, percebi que ficava mais irritada com estas coisas que não funcionam bem aqui – seja o simples ato de pegar um táxi, ou algo mais “complexo” como enviar dinheiro ao Brasil. No entanto, andando alguns minutos pelas ruas de Yangon, a realidade do país me saltou aos olhos: vendedores de rua em suas barraquinhas o dia inteiro ao sol, crianças descalças vendendo flores nos semáforos, crianças trabalhando nos “tea shop“(restaurantes locais), senhoras idosas pedindo dinheiro nas ruas, cachorros de rua, maltratados pela vida nas ruas…
Quando se sai de Yangon, têm-se uma dimensão do quanto o país ainda está atrasado em seu desenvolvimento. Existem 2 cidades maiores: Yangon, a ex-capital Mandalay, e ainda, a chamada “capital fantasma”, Naypyidaw, assim chamada porque, de repente, os militares decidiram criar uma nova cidade para mudar a capital do país: ruas gigantescas de 4 vias – ou mais – foram construídas, mas poucas pessoas moram lá, pois todas as embaixadas permaneceram em Yangon.
Fora estas cidades, existem cidadezinhas e muitos vilarejos. Muitos vivem em povoados, nas montanhas, e não falam o idioma oficial do país, o birmanês. Myanmar tem 135 etnias, muitas das quais têm seu próprio idioma. Muitos no país não têm saneamento básico, vivendo em estado de extrema pobreza. Muitas crianças não têm acesso à educação; muitas trabalham para ajudar as famílias ou são mandadas as ruas como pedintes em cidades grandes. No Myanmar há um problema grave de maus tratos a domésticas: muitas famílias empregam meninas de 12, 14 anos, e as tratam como escravas. Elas sofrem agressões físicas, humilhações… Vez ou outra aparece um caso nos jornais, de alguma menina que foi resgatada destas terríveis condições de vida.
Em cidades como Yangon ou Mandalay o contraste fica mais nítido: vemos birmaneses ricos vivendo em mansões, jovens que usam roupas de grife e visitam clubes caros e gastam numa noite o que muitas famílias não possuem para passar o mês. Mas vemos também canalizações a céu aberto, ao lado praticamente de um hotel 5 estrelas que oferece o maior luxo para aqueles que podem pagar. Vemos seguranças, o pessoal que faz limpeza e motoristas, em seus uniformes trabalhando em hotéis de luxo ou em empresas modernas, onde se negocia altos valores em dinheiro enquanto estes trabalhadores ganham talvez uns 150 até, provavelmente, no máximo, USD 300 ao mês. De um lado, o moderno restaurante em estilo e com comidas ocidentais, onde se pode pagar 20 dólares por um prato ou 40 por uma garrafa de vinho e bem ali, do outro lado da rua, em frente ao estabelecimento, os vendedores de rua, na calçada, comendo sua mohinga de USD 1,50, dando duro o dia interio.
Esta desigualdade pesa. Pesa e faz pensar como a vida e o sistema são injustos.
Faz pensar que um rapaz tem que trabalhar embaixo de um sol escaldante para ganhar uma miséria, enquanto o outro, da mesma idade, frequenta as melhores escolas particulares e disfruta de uma vida cheia de privilégios. Imagino que o budismo diga que seja carma, que cada um passa pelo que tem que passar de acordo com o tenha feito numa vida anterior. Eu acredito em capitalismo predatório que, em países como este, ficam muito visíveis. Condições que não são desconhecidas a nós brasileiros.
Claro, todos estes estabelecimentos – o restaurante chique, o hotel de luxo, o shopping no melhor modelo ocidental – geram empregos, o que é, sem dúvida, bom. Proporciona uma vida um pouco mais digna para aqueles que conseguem estes empregos. Alguns, com um pouco mais de educação, aprendem inglês e conseguem salários um pouco melhores. Mas não muda o fato de ser sempre um grande contraste entre estas realidades. As famílias dos militares que antes estavam no poder (e ainda estão parcialmente) são milionárias, dinheiro provindo da corrupção e do descaso pelas condições de vida da população. Uma lição aos lunáticos no Brasil, que dizem querer a ditadura de volta e que naquela época não havia corrupção.
Me corta o coração pensar na situação dos animais de rua, que não tem quem olhe por eles, estão a merce do tempo (Myanmar tem um longo período de monções), da fome. No entanto, aqui, pelo menos, as pessoas, mesmo as que menos tem, demonstram compaixão. Sempre tem alguém que deixa uma porção de arroz e, às vezes, restos de carne para os cachorros de rua. Existem pessoas que se preocupam e até alguns abrigos na cidade.
Com uma vida tão dura e tendo que lutar pela própria sobrevivência, até entendo que muitos não tenham tempo para pensar na situação dos animais. E quem ajuda aquela senhorinha de 70 anos com seus cabelos brancos, pedindo dinheiro na rua? Quem ajuda o pai de família que tenta sustentar os filhos vendendo salgados fritos no calor das ruas de Yangon? Uma coisa que percebo muito aqui é que mesmo pessoas em condições desiguais ou mais miseráveis não costumam ser amargas; não invejam o outro.
É essa dura realidade dos birmaneses que me faz pensar muitas vezes, sobre a forma como agimos, por exemplo, como quando nos irritamos ou reclamamos de algo que não funciona como esperamos, pois ao vir a desigualdade social daqui tão grande, entendo que nada pode ser tão injusto como isso.
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