Durante a revolução egípcia de 2013 veio à tona diversos casos de assédio sexual durante os protestos em praça pública. Nesse contexto, um vídeo se popularizou sobre o chocante parecer de um dos agressores. Ele dizia algo mais ou menos assim: “É claro que a gente faz isso, a gente não tem condições de casar.”
Se em um primeiro momento a espontaneidade das palavras nos levam a um choque e extrema repulsa, essa frase há muito mais da sociedade egípcia implícita do que se pode imaginar. No mês passado, falamos sobre a vida das mulheres no Egito, nada mais justo do que mostrar o outro lado da moeda, a também nada fácil vida dos homens.
Entendo que você está se perguntando qual a relação proporcional direta entre não casar e assediar. Bem, aí no Brasil, nenhuma. Mas aqui… digamos que esse se torne um fator exponenciador da prática, mas que de forma alguma a torna tolerável. Fato é, que pelas bandas de cá, sexo fácil não está no cardápio dos bel prazeres que um homem solteiro tem em um sábado à noite. As mulheres aqui se casam virgens. Então, uma das únicas formas de consegui-lo é através do casamento. Aí agora ficou fácil, é só casar!
Entretanto, esse “só casar” por aqui depende de uma série de pré-requisitos, nada fácil de serem atendidos por um jovem. Primeiramente, para noivar ele precisa oferecer um dote em ouro. O valor vai depender da classe social e poder aquisitivo da família, mas no geral gira em torno de no mínimo 5 mil reais. Primeiro quesito cumprido, ele precisa ter um apartamento próprio. Aqui não tem essa de casar e morar de aluguel, no puxadinho no quintal da mãe ou na casa da sogra, não. Tem que ter imóvel, e tem que ser de acordo com o poder aquisitivo da pretendente. Esse bairro? Não, volta depois. Só dois quartos? Quando comprar um de três você tenta de novo. O apartamento está bom, mas você não tem carro? Minha filha não vai andar de ônibus. E por aí vai.
Agora eu pergunto, que rapaz antes dos 30 anos tem condições de adquirir tudo isso? Isso, porque ainda não contei que a casa tem de estar inteirinha mobiliada (metade paga por ele). E a festa de casamento? Põe na conta do noivo também. Pai da noiva aqui só vai à festa como convidado vip.
A verdade é que quase nenhum deles consegue tal façanha ainda novo. E a pressão social é para que se casem ainda antes dos 30 anos. Cansa pensar no que essa pessoa sofre em driblar todas as mazelas sociais para cumprir todas essas metas e ser digno do reconhecimento da sociedade. Obviamente, a maioria deles não o faz sozinho, tem a ajuda dos pais. Desde que o bebê nasce, o pai já começa a confabular como ajudá-lo. Mas a parcela de pais que tem condições é pequena, até por que as famílias aqui têm muitos filhos. Ele já se cansou demais para conseguir as coisas para o próprio casamento, imagina começar tudo de novo para o do filho. Ainda assim, a maioria torce pela vinda do “filho homem”. Talvez porque ele será o único a tirar o peso das responsabilidades do pai, e até mesmo representá-lo em sua ausência.
Ser filho único é um grande fardo. Ele não poderá fazer para si mesmo, até que as irmãs estejam encaminhadas, o que inclui pagar a faculdade, comprar a parte dos móveis que cabe a noiva no casamento. E claro, dar aquela espiadinha básica no que elas andam fazendo.
Se a mulher é fadada ao lar, o homem precisa assumir toda a condição de provedor da família. Um dos motivos para não aceitarem as esposas trabalharem é a vergonha da sociedade. Vão pensar que ele não está dando conta de prover o sustento.
Devido a essa grande cobrança e todo o esforço despendido para que cumpram seu papel em um mercado de trabalho tão debilitado, muitos acabam pensando que “pagar” é o suficiente. Contanto que a família tenha tudo que precisa dentro de casa, nada mais lhe é devido. Muitos pensam assim! Uma amiga se queixava por não ser feliz com o marido e dizia: “Não sei por que não sou feliz, tenho tudo: apartamento, carro, comida. Acho que o problema é comigo”. Se faltavam carinho, amor e companheirismo, isso era papel da esposa e, portanto, falha dela.
Além de provedor, ainda mais é cobrado do “sexo forte”. Nossos meninos crescem se preocupando em como ganhar a própria vida no Brasil, os daqui se preocupam em não perder a vida em nome do Egito. Há sempre uma possibilidade de guerra. Tão popular quanto os contos de fadas para as meninas, são os contos de guerra para os meninos, só que contos da vida real. Cresceram escutando os pais, tios e avôs contarem sobre as guerras que lutaram. O pai do meu marido foi para duas guerras e, em uma delas, teve que voltar andando do Sinai para o Cairo (600 km), porque o Egito perdeu para Israel e não tinha como resgatar os soldados que ficaram por lá.
O meu marido não precisou servir exército por ser filho único, um dos únicos motivos de dispensa por aqui, – tirando isso, você pode ser deficiente, ter problema de coração, tatuagem, cabelo roxo e ser fã da Beyoncé, não importa, vai para o exército!
Aí você pensa que eles fogem da guerra como o diabo da cruz. Nada disso. É motivo de orgulho lutar pelo país e se tornar um mártir. Um tempo atrás, houve uma situação de iminência de guerra. Sentia-me feliz e satisfeita saber que mesmo que um conflito ocorresse, ele não estaria lá. Já a mãe dele… Gritava em frente à televisão super entusiasta como quem torce para um time de futebol e falava “você vai estar lá, na linha de frente e vai ser o meu orgulho!” Então tá!
8 Comments
Já disse que estou amando esse blog? Nunca viajei para muito longe, mas basta ler um de seus posts para me sentir “viajada” rs. Caraca! Que vida dura a dos egípcios, hein! Parabéns pelo texto, muito bem escrito =). Imagino também que se fosse fácil esses homens já teriam deixado o país, quanta responsabilidade! Enfim, culturas… Bjinhu Mi!
Muito obrigada, Lis. Me sinto lisonjeada por ser capaz de fazê-la sentir em outros lugares.
Quanto a deixar o país realmente não é fácil, vistos para egípcios é bem restrito.
Continue acompanhando, vem muita coisa interessante por aí!
Amando
Eu achei enteressante não sabia que para se casar seria tão difícil no Egito.
Gostei muito dessa pagina….
E também gostei das histórias…
Eu entrei aqui para procurar a resposta para um trabalho de história,não encontrei tal resposta ,mas,me impressionei….Achei D+…
E mais uma vez meus parabéns…
Nossa Michelle, estou super encantada com seus esclarecimentos. Ainda (des)acreditando que estou passando por uma situação exatamente como descrita acima. Viajei para o Egito ano passado e conheci um beduíno que foi nosso guia na subido ao Monte Sinai. Nem preciso dizer que fiquei encantada com a imagem de um homem bonito e gentil. Durante a segunda metade da subida seguimos juntos e conversamos o que foi possível, já que ele precisava ficar atento ao grupo. Ele me observava sempre que podia e logicamente o meu grupo percebeu o lance rsss. Trocamos telefone e hoje nos comunicamos com frequência. Ele vive dizendo que me ama e pergunta quando vou para o Egito novamente. Já pesquisei outras histórias de relacionamentos com egípcios e tenho consciência dos fatos. Também tenho uma tentação enorme de voltar lá para vê-lo novamente. Tudo o que você escreveu faz sentido quando comparo a situação econômica do pais e o lugar onde ele mora, região completamente desértica. Mas no fundo quero acreditar que uma amizade possa existir entre nós sem interesses conjugais.
Boa noite querida,estou tendo um relacionamento com um egípcio estou procurando entender a cultura de la,meu sonho conhecer o Egito
Olá Deuzelena,
A Michelle Bastos parou de colaborar conosco e, infelizmente, não temos outra colunista morando no país.
Obrigada,
Edição BPM