As últimas semanas tem sido inspiradoras. Como a minha missão em Gana se encerra no fim do ano, há muitas coisas para refletir sobre esses quase dois anos de experiência na África Ocidental. Um dos pensamentos mais recorrentes ultimamente refere-se à quebra de estereótipos e mitos sobre o que é viver em um país africano – e isso você só consegue se de fato morar aqui.
É essencial porém enfatizar que as visões expostas aqui são minhas, relativas à minha experiência em particular e de nenhuma maneira buscam generalizações. Se tem uma coisa que aprendi é que ainda sei muito pouco do que significa viver em Gana.
Talvez um dos fatos mais curiosos que tenho notado sobre Gana tenha sido a sensação de segurança. Guardadas as devidas diferenças com outros países na região, este é um país relativamente seguro. E em Acra, a vida segue sem maiores riscos. Esse parecer pode provavelmente ter sido o fator calmante para a minha família quando eu disse, ano passado, que Acra é mais segura que muitas cidades brasileiras.
O que eu mais gosto daqui é que caminho nas ruas tranquilamente, com os devidos cuidados que devemos ter em qualquer lugar, não me sentindo um alvo fácil. E estou certa de que muitos estrangeiros assim se sentem. Uma vez, conversando com um oficial de segurança, falávamos justamente do nível de periculosidade da cidade e não me admira a comparação feita por ele: o padrão de criminalidade em Acra é certamente muito diferente do que existe em muitas cidades brasileiras, porque os crimes aqui não são tão violentos.
Você vai se deparar com discussões no trânsito, motoristas parando seus carros na defesa de um ou outro, um grito aqui outro ali, muita argumentação, mas dificilmente violência física. Entre os crimes mais comuns estão roubos e fraudes.
Na pesquisa para escrever esse post, tentei buscar alguns dados mais estruturados sobre segurança pública, mas é um desafio conseguir acesso a informações – transparência ainda é tabu. De todo modo, o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) traz uma coletânea de estatísticas interessantes. Para reflexão, reproduzo abaixo os índices de homicídio reportados em Gana e Brasil nos últimos anos, com o cuidado de ressaltar as possíveis (e inúmeras) variáveis por detrás dos números. Para maiores informações, clique aqui.
Em dois anos vivendo aqui não tive maiores problemas. Vou para lá e para cá de táxi, de manhã, de tarde e de noite (táxis em Gana não têm a mesma conotação que no Brasil, porque na ausência de transporte público, eles se tornam um dos principais mecanismos de locomoção a preços razoáveis). As memórias que me vem à mente são de momentos inusitados e engraçados, mais do que de inquietude ou medo.
Razões sociológicas para o fenômeno eu deixo para os sociólogos, mas me arrisco a dizer que em geral a sociedade é muito tranquila, vive o seu ritmo singular (que para os apressados e estressados se traduziria em uma lentidão enervante) e sempre com muita conversa e histórias para contar. Pergunto-me se o fato de a religião ser muito presente em todas as esferas sociais teria alguma influência (71% da população é cristã, 17% é muçulmana e outros 5% praticam religiões tradicionais). É possível nos depararmos com uma sessão pública de orações por crescimento econômico ou uma prece no início de uma reunião de trabalho.
A relativa estabilidade interna do país se reflete também nos compromissos assumidos para manutenção da paz regional e internacional, inclusive com a participação ativa de tropas ganenses em missões de paz da União Africana e da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS). Mais de 80 mil soldados atuam ou atuaram em 31 países dentre eles Congo, Ruanda, Namíbia, Serra Leoa, Libéria e Camboja. Além disso, o ex-Secretário Geral das Nações Unidas (1997-2006), Kofi Annan, é um diplomata ganense e Nobel da Paz por sua contribuição a uma agenda de paz global e revitalização da ONU. Acra inclusive sedia o Kofi Annan International Peacekeeping Training Centre, responsável por prover treinamentos e pesquisas relativos a missões de paz.
Apesar desse contexto, infelizmente o aparato de segurança nacional ganense é disfuncional, tendo consequências diretas na investigação de casos e atendimento a emergências. À falta de estrutura, equipamentos e treinamento adequado das forças policiais alia-se a cultura corruptiva.
Não é incomum subornos para ter menos dor de cabeça na blitz. E infelizmente há um efeito de falta de controle em todas as esferas da vida pública. Onde começa e termina a corrupção é difícil saber, mas não se surpreenda se um policial, um segurança particular, um funcionário público ou um amigo te “pedir um presentinho”. Respire, sorria e arranje uma desculpa para não pagar. Next time geralmente funciona bem.
As imagens que levarei comigo, no entanto, refletem uma Gana alegre, que me proporcionou momentos divertidos e de muito aprendizado, uma Gana criativa, com sede de promover espaços alternativos de arte. E o rapper M´anifest ilustra bem essa dualidade de sentimentos de quem experimenta Gana, nessa entrevista para a BBC Africa: Africa Beats: M.anifest back in’inspirational’ Ghana.
Nos próximos posts falaremos mais de entretenimento – e de um pouco de azonto também!
14 Comments
Mais um texto super pertinente e que nos faz repensar os conceitos que temos sobre os países africanos. Obrigada por escrever com tamanha sensibilidade!
Obrigada Cristiane, fico feliz que tenha se identificado com a minha percepção.
Não que seja fácil, mas deve ser bem mais tranquilo viver na África trabalhando para a ONU. Fiquei até curioso para saber a opinião de algum policial ou funcionário público ético e honesto que é obrigado a trabalhar e conviver diariamente com o resto da população. A África deve ser perigosíssima para eles!
John, são mundos completamente diferentes, e cada visitante tem uma percepção e vivência diversa. É por isso que sempre ressalto que todas as minhas notas são muito pessoais. Ademais, não dá para falar de segurança na África, porque há uma grande variância entre países e entre as sub-regiões. Mesmo em Gana, posso garantir que há violência e zonas perigosas para todos, locais e estrangeiros. Mas relativamente, este é um país que não possui conflitos (como no Sudão do Sul, República Centro-Africana e Burundi) e até o momento não sofre com intervenções de milícias ou grupos terroristas (como no Norte da Nigéria). A ONU proporciona medidas de segurança a seus funcionários, e é responsabilidade do Estado receptor zelar pela segurança dos que aqui trabalham. De fato, fica a reflexão sobre igualdade de tratamento que você levantou acima. Um fator que está por detrás da violência, e certamente comum a qualquer lugar, é a pobreza e desigualdade – e porque não, corrupção.
Legal Lorena, estou escrevendo um romance com um tempero forte de suspense, e curiosamente se passa em Gana. Mesmo sem conhecer este país vejo que não estou escrevendo besteiras, a trama se passa em um país relativamente calmo para os padrões Africanos propagados pela mídia internacional, na trama um doutor ganês físico renomado no mundo todo retorna ao seu país depois de anos fora, para concluir uma pesquisa científica que elabora, escolhendo Gana para sua pesquisa de campo. Curiosamente Gana deu ao mundo Koff Anan, um diplomata diferenciado, basicamente este doutor ganês da trama, guardadas as devidas proporções é claro. Li teu artigo e notei coincidências com o livro que estou escrevendo, ainda que sejam coincidências sem qualquer conhecimento basilar do país. Gostaria se possível manter contato com você via email, para que possa me ajudar com dúvidas e esclarecimentos atinentesa este país que poderão contribuir e muito para enriquecer a história. Não sou adepto de obviedades, poderia ambientar a história em países ricos de primeiro mundo, mas Gana surgiu sem qualquer pré escolha. Sinal que pode ser uma boa história. Grande sorte em seus projetos e abraços desde o Brasil.
Estamos com um projeto muito interessante para África e em breve estaremos na cidade de Acra desenvolvendo-o.
J.B
Olá Lorena, blz? Quanto às possíveis causas desta pacificação social que desafia preconceitos. Compartilho com você um texto de 1995 e outro que o corrobora de 2014. Você notou em Acra o que é defendido nos textos? Uma cidade sem grandes desigualdades sociais, sem grande apelo ao consumo? Uma última curiosidade minha, você quando escreveu o texto, era cristã?
abç e tudo de bom
1995 – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/9/03/brasil/22.html
2014 – http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/08/8985/pode-se-ter-pouca-violencia-com-muita-desigualdade/
olá boa tarde, conheci uma mulher de nome Evelyn Valdes, agente troca Emails e fotos ela me diz que é solteira, trabalha e mora com o avô, e eu sou de recife divorciado e moro só, ela quer que eu vá viver com ela nessa cidade de Acra em GANA, só que fico um pouco receioso porque ainda não conheço nada lá é claro, ela já me passou o telefone mas não consigo falar com ela, meu inglês é muito basico, estou me comuncando com ela por email com o GOOGLE TRADUTOR, como faço pra saber de verdade se há veracidade ou não no que ela me fala em querer alguém pra casar e ser feliz.
Ola Linduarte, sugiro que leia os textos sobre relacionamentos online, segue o link abaixo. Infelizmente muitas pessoas tem sido vítimas em casos como o seu. Nem sempre o que parece é. Muito cuidado na hora de passar informações e nunca de dados de banco ou endereço. Boa sorte!
https://brasileiraspelomundo.com/category/relacionamentos-online
Estou fazendo um trabalho para uma construtora em Kumasi, Gana; a construção de um gigantesco mercado e me interessei pela maneira desse povo viver, essa economia “maluca” que se resulta em um mar de barracas de camelôs espalhados pelas calçadas e ruas até onde os olhos alcançam no horizonte. Uma quantidade de carros e vans que entopem as visa por mais largas que sejam, algo inimaginável. Daqui das terras capixabas da conterrânea autora deste post, tiro proveito desta leitura para aprender um pouco mais. Gostei muito de tê-lo encontrado.
Olá vou iniciar um projeto para atingir alguma área de necessidade em Gana, como você já vivenciou a realidade deles pode compartilhar qual área eles são mais carentes?
1) Educação Primária
2)Saneamento Básico
3) Atendimento médico
Atenciosamente, e se puder ajudar ficarei grata.
Olá Mileide,
A Lorena Braz parou de colaborar conosco e, infelizmente, não temos outra colunista morando no país.
Obrigada,
Edição BPM
O grande pro lema dos brasileiros é a falta de conhecimento, não conhecem muita coisa para além das suas esquinas.
É incrível como para certos indivíduos a África, todo um continente de 54 países e inúmeras etnias, é, incontestavelmente, perigoso, violento. Associam pessoas pretas a bandidos por natureza, como se nós tivéssemos colonizado Europa, Ásia e Américas.