Destituída.
Fui buscar o significado no dicionário e lá encontrei: demitido; que foi retirado ou afastado de alguma ocupação ou função. Desprovido ou privado de alguma coisa.
Fui demitida?
Fui. De mim mesma, da ocupação de ser quem eu sou. Fui desprovida e privada de mim.
É difícil escrever isto. Vou digitando e as emoções me saem pelos dedos e procuram a tecla certa. Minha mente me repreende – meu Deus, minha religião, minha mãe e o Universo também. É que eu deveria ser feliz, estar feliz e grata. Sou feliz, mas isto não anula meus sentimentos vividos, isto não apaga minhas dores… Se sim, eu me destituo. Escrevo para me prover do que fui desprovida, para reaver em mim sentimentos e sentidos que ficaram congelados enquanto eu assumia um cargo novo, uma nova identidade.
Escolhas não são fáceis. Viver requer fazer escolhas e tomar caminhos que às vezes nos levam a algum lugar onde você já não sabe quem é. Migrar é assim.
Sair do seu lugar não é só geograficamente sair de um local para outro. Migrar requer elaborar um personagem, migrar requer novos gostos. Migrar te exige consentir, assimilar. Migrar exige aceitação. E tudo bem, se eu quiser, mas e se eu não quiser? E se as circunstâncias forem maiores do que minha vontade, e se minha realidade for maior que meu desejo de mandar tudo pro alto? E se meu desejo de mandar tudo pro alto me mandar de volta? De volta pra onde?
Talvez o lugar da volta não seja o que eu quero, talvez no lugar da volta já não seja possível que eu me reencontre, talvez eu já não esteja mais lá também. Entende?
Where are you from?
Ser ou não ser?
Quem migra, sabe.
Mulheres que migram vencem o maior desafio que pode haver. Vencem a si mesmas. Mulheres que migram mesmo tendo uma vida boa, muito melhor do que a que tinham, se refizeram. Para o bem ou para o mal. E muita gente vai dizer que nos reconstruímos no dia a dia com a perda de alguém querido: verdade; com uma mudança no emprego: verdade; com uma mudança no status social: verdade.
Migrar, contudo, requer uma mudança de identidade, de estar no mundo. Você perde um ente querido, sofre, sua vida muda, muda sua rotina, mas para seu vizinho, seu chefe e seu cachorro você continua sendo o João, o José ou a Maria. Quando você migra, você não é mais você, sabia? Se não sabia é porque não migrou. Quando você migra, em geral você é a esposa do João, do José ou… Não, você não é a Maria, você é a brasileira, a argentina, a portuguesa, a japonesa, casada com um senhor outro que tem nome, profissão, um curriculum, carro do modelo tal, uma escola que frequentou, é amigo do fulano e inimigo do beltrano, seus pais são dona Sicrana e seu Beltrano e ah, ele torce pelo time tal, ou talvez nem goste de futebol.
Este ser que você resolveu acompanhar te destitui. Na verdade, sem intenção, às vezes. E o novo mundo te demite de ser você. O inferno são os outros, disse Sartre, e aqui se aplica. Normal, né? Eu só existo na relação com o outro e pro outro eu acabei de chegar. Você não tem ‘passagem na polícia’ por essas bandas – digo, passagem como registro da memória deles. Você é qualquer coisa, qualquer nome ou adjetivo que alguém quiser te dar.
A barreira mais difícil pode ser o idioma. Se você não fala, então… Você não vai poder nem tentar contestar sua nova identidade: sem palavras.
Se você fala, talvez consiga ler seu passado como quem conta uma história: era uma vez (esse “eu” que você nem mais sabe onde está). Você fala de si mesma como um personagem. Se você fala bem, você se cansa; e se fala, mas não muito bem, cansa igual, porque tem que se desdobrar falando.
Por que nos explicamos tanto? Porque ninguém me conhece, porque eu tenho que me apresentar 295 mil vezes. Porque eu sou insegura ou porque eu sou segura demais e tem uma pontinha do meu ego que não aceita esse anonimato total.
Migrar dá preguiça. Dá uma preguiça enorme de me apresentar pro mundo. Dá quase uma vontade de pendurar um curriculum no idioma local com certos adendos, tipo: sou brasileira, mas não curto pagode e não faço programa. Sou negra, mas não sei sambar. Sou branca de olhos verdes e, sim, sou brasileira. Sou brasileira e tenho doutorado. Opa… Se admirou, né? Não uso fio dental na praia e meu sonho nunca foi casar com um gringo rico ou morar no “exterior”. Sou brasileira e quando tô com raiva, xingo em português, sou braba, sim, choro por um monte de coisas e não acho natural comer feijão na salada e só bater palmas num jogo de futebol. Socorro!
Por outras bandas, somos normais. Ou quase. O que nos aproxima é nossa humanidade e, com ela, toda aquela carga de virtudes e defeitos que falam inglês, russo, japonês, esloveno, sérvio, árabe, espanhol, italiano e hindu. Sou humana, sou mulher.
E assim, despida de mim e vestida de clichês: negra, deve ser brasileira, africana. Olho puxado: deve ser asiática… Saio por aí e acho tudo lindo, porque afinal é tudo lindo, mesmo, geralmente. Também pode não ser e, em vez de encenar sob o sol da Toscana, eu atuo em Jurassic Park e parece que o mundo quer me engolir. Meu roteiro pode ser de filme romântico, de terror, de suspense, ou uma comédia. Comédia é mais difícil, mas vá lá. Deve ter.
E eu atuo, eu aturo, às vezes não. Eu aguento, eu calo, eu sofro, eu rio. Finjo, minto – mentirinhas de preguiça: “ahã, sim, sim”, quando me fazem pela milésima vez a mesma pergunta e já dão a resposta. Eu tenho medo, eu sinto saudade. Eu sinto saudades profundas de mãe, de pai, de filhos. Eu sinto saudades verdadeiras de amigos, de vizinhos, de parentes. Eu sinto saudades absurdas: de pão francês, de arroz com ovo, de farofa, de caju; de me sujar com manga, de ir à praia lotada no fim de semana. Eu sinto saudade de mim.
Mas eu sigo adiante, ou não. Eu fujo, eu volto, eu me escondo, eu sucumbo, eu desisto.
Eu quase desisti, mas desistir seria desistir de mim mesma. Aí eu fiz assim: olhei para a situação, entendi e mudei a situação. Parece fácil, né? Não é.
Eu poderia até escrever aqui palavras de livro de autoajuda, frase motivadoras, mas não vou, não, porque doeu. Porque não é verdade e porque o que de menos uma migrante precisa é de palavras vazias de verdade. Vazia de verdade, já basta muitas vezes sua própria sua vida.
Você era veterinária, você fez pós em arquitetura fora do Brasil, mas, aqui, seu conteúdo nem sempre será revalidado. Seu conteúdo todo, entende? No diploma e no resto. Então você segue adiante e vai se construindo no dia a dia, você vai montando sua grade de aprendizado aos poucos, sem lenço e sem documento, mesmo, por entre fotos e nomes, novas paisagens, novas pessoas. E, de repente, um novo eu, reciclado, nasce.
Boa notícia: tenho renascido aos poucos e estou bem feliz.
“Mude, comece devagar, pois a direção é mais importante que a velocidade” (Clarice Lispector).
Eu desejo, então, que você renasça. Espero que você tenha força suficiente para se reconstruir, pra recomeçar, pra se reinventar, pra ficar, voltar ou seguir outro destino. Espero que sua vontade de viver derreta qualquer inverno rigoroso, que seus sonhos refresquem o deserto que você pisa. Que você se faça compreender em suas ações e que elas sejam maiores que qualquer idioma ininteligível. Que você seja maior que sua pátria, que te perguntem menos de onde você é, mas sinceramente: “Quem é você?”
Que sua força de mãe, de esposa, companheira, trabalhadora expatriada, filha, mulher, seja do tamanho do mundo e ultrapasse fronteiras. Que ela – a força feminina que migra e transcende – seja e esteja em você, qualquer que seja o passaporte que você usar.
39 Comments
Demais!!!! Só isto a dizer!!!!
Obrigada!Abs
adorei seu texto. Poesia pura. Valeu.
Obrigada! Abs
Muito bonito o seu texto e depoimento Marta. Morei 6 anos no exterior e poderia ter ficado ate hoje. Mas resolvi voltar para o Brasil com a minha familia, e estamos felizes, embora sinta saudades dos desafios de ser uma desconhecida em outro pais. Lendo seu texto entendi porque. Se reinventar e tbem uma oportunidade de um novo comeco, ser outra pessoa e fazer coisas novas.
Felicidades.
Abs, Adriana
Olá! Obrigada! Se reinventar sempre! Desisitir seria entregar-se, temos que fazer a “viagem” vida valer a pena.Bjs
Esse texto me caiu como uma luva. Estou tentando me reencontrar nesse novo lugar onde eu não sou eu. Obrigada pela bela reflexão.
Esse lugar não é fácil, o do “não eu”, mas é uma oportunidade maravilhosa de se reencontrar, reconstruir, recomeçar e não mais apenas REagir, agir de novo, com a mesma resposta, mas AGIR, de uma nova maneira, renascida, nova e cheia de força. Que o encontro com seu eu neste novo lugar seja de completude, desafios e muita força. Obrigada! bjs
Adorei! Mexeu com muitas emoções!
Parabéns!
Obrigada! Bjs
Lindo texto Marta…viajando pelo mesmo horizonte, as vezes no mesmo barco.
Admiro muito voce e seu trabalho. Com carinho, sua amiga, Fernanda
Obrigada! Bjs
Marta, muito prazer! Foi muito gostoso ler o seu texto, mergulhar nas suas certezas e incertezas, como se fossem minhas. Como voce e mais anos do que voce, me demiti, me readimiti, me perdi e me achei por este mundo afora… nos ultimos 50 anos.Lembro claramente as palavras da minha mae “Menina, quando vais sossegar seu facho?” e eu respondia “Quando tiver meus filhos”. Porem, assim que eles se despediram do ninho, novamente parti, migrei e deixei as loucas, porcelanas, porta retratos, e todas as quinquilharias acumuladas na busca de um novo eu, carregando na alma e no corpo, lembrancas da caminhada de uma vida bem vivida e repleta de erros e acertos. E, como voce, posso dizer que valeu a pena, sou feliz.
Parabéns Marta, belo texto! Mexe demais e o coração fica apertado…
Obrigada! Abs
Adorei o artigo!
Estou em Malta, mas buscando um novo ponto para estudar e trabalhar.
Alguma dica pra mim?
Olá Marcia.obrigada!Meu post de Agosto será extamente sobre estudar na Eslovênia.O que você está buscando? Que tipo de curso? Master? Doutourado?Abs
Maravilhoso, seu texto! Muito obrigada!
Obrigada querida!Bjs
É…Não é nada fácil!!! Chorei lendo esse texto , mas a vida segue não é mesmo Marta ? Um grande abraço ?
Obrigada por ler. Força, siga em frente, faça escolhas, com perda e ganhos, mas não se perca.A sua essencia e sua alma. Bjs
Meu Deus, que texto! Me descreveu!
Obrigada Ana por ler.Força. Um abraço
Fiquei emocionada Marta. Belo relato.
Obrigada Karol.Um abraço
Olá Marta. Adorei e super me identifiquei com seu texto. Tb sou psicóloga. Moro na España há 11 anos. Dificil pra mim é nao ser mais d lugar nenhum, aqui eu sou Brasileira e no Brasil sou Espanhola. Depois de 11 anos fazendo trabalhos como Auxilar ou Jr da minha área de atuaçao q é RH, exatamente pq nossa experiencia de Senior aqui nao conta, me fez pensar e repensar pra que realmente sirvo. Crise de identidade profissional e talento por uma escolha feita a mais de 11 anos atrás onde vc nao é visto como uma pessoa com qualidades, talentos, estudos e experiência. Mas o livre arbitrio é isso. A vida é feita de escolhas…
Oi Sandra, sim, escolhas, perdas e ganhos.O mais importante é no meio de tudo isto nao nos perdermos, nossa essência,nosso chamado.Voltei a escrever e retomei um pouco dessa minha essência, já que atuar na Psicologia aqui e praticamente impossível.Obrigada por ler! Bjs
Lindo Marta! Você realmente é puro coração adoro os posts do Sementeira e esse me emocionou muito Parabéns!
Querida Iraci muito obrigada! Bjs
Me emocionei, muito! Pra mim o (mais) difícil definitivamente não é a língua ou o inverno e sua escuridão e frio, é certamente não ser eu… 🙁
Oi Marina,para mim também, os dias cinzas me afetam muito.Força e sinta-se abraçada.
Me vi em cada parágrafo do seu texto. Parabéns! Texto incrível!
Obrigada!Força!
Já li esse texto mais de uma vez e sempre me emociona, me identifico com todas essas verdades.
Obrigada por ler meus textos e acompanhar minha página do Sementeira! Bjs e forca!
Fiquei emocionada. Excelente texto!
Oi Julian,
Obrigada! Forca e continue lendo meus texto! Abs
Oi Marta,
Obrigada por compartilhar o seu texto. Me identifiquei e me emocionei com suas palavras. Faço parte de um grupo de mulheres internacionais (124) e adoraria compartilhar com elas esse seu texto. Mas primeiro gostaria de saber se você teria esse texto em inglês ou daria a permissão para que eu tentasse traduzir para o inglês, e obviamente o texto vai manter sua autoria. Obrigada!!! Bjs
Ola Susan,
Obrigada a você por ler meu texto. Posso escrevê-lo em inglês se você quiser divulgar vou ficar muito feliz. Vamos nos comunicar pelo meu email: marta.berglez@gmail.com
Bjs e aguardo seu contato.