O desafio de partir.
A chegada de um novo ano é sempre acompanhada de reflexões sobre o último ano vivido e de desejos e planos para esses doze meses que acabam de começar. Muitos criam listas, fazem promessas, apostam em alguma superstição. Outros, incrédulos, fazem da passagem uma troca de dia qualquer. Não obstante, a atmosfera fica com um ar diferente e é impossível não se deixar afetar! É momento de olhar para trás, de fazer uma retrospectiva e um balanço. E é momento de olhar para frente e desejar, querer e buscar as maneiras de concretizar cada pedaço desse “novo” que nos propomos. Se para Carlos Drummond de Andrade a “Receita de Ano Novo” é que “(você) tem de merecê-lo, / tem de fazê-lo de novo”¹, para muitos o caminho é buscar uma vida fora do Brasil.
Os motivos que nos impulsionam a querer imigrar são diversos, um ou uma combinação de fatores que, crescendo, ou em um momento de impulso, nos levam a fazer as malas e partir. Pode ser uma proposta de trabalho, um novo amor – ou um velho amor que desmoronou. Pode ser pela busca de desbravar o mundo, pelo sentimento do “sem lugar”, por uma inquietude de se arriscar. Pode ser para acompanhar o sonho de outrem, ou pode ser para buscar um novo sonho quando muito já não faz sentido algum.
Eu parti por amor. Seja qual for o motivo, porém, partir é um desafio que não acaba ao atravessar a fronteira: ele permanece, sem cessar, todos e cada dia dessa nova vida. Às vezes, de maneira mais intensa, latente. Um dia das mães ou dos pais, um Natal em que não foi possível ir e ninguém pôde vir, uma ocasião especial (formatura, nascimento, falecimento), um domingo vazio. Às vezes – seja pela correria do dia a dia ou pelo encantamento em descobrir um novo tudo – o desafio se intimida e é quase tranquilo… o que não permite abaixar a guarda, afinal, sua presença é irremediável.
Partir é aceitar viver em um lugar incomum, é ser mais um numa multidão que não é a sua. É deixar para trás os cheiros e barulhos que construíram toda uma história e muitas lembranças. É chorar de saudades. E, logo, chorar mais – afinal “a saudade / é prego parafuso / quanto mais aperta / tanto mais difícil arrancar”². Partir é sentir sabores, sem comer. É fazer-se presente, sem estar. É esperar, com ansiedade, cada visita recebida e contar os dias para o dia de ir visitar – e sentir que, nessas ocasiões, o relógio anda mais depressa, ao invés de simplesmente parar. É testar o coração em cada despedida, apertá-lo tanto que parece (ou de fato acontece) que ele vai dividir-se: uma metade que fica, outra metade que vai.
Partir é abrir mão dos almoços de dia das mães e dos pais, do Natal sempre farto em família, de estar presente em ocasiões especiais – e nas de dor também. Partir é se sentir meio anônimo no próprio aniversário, mesmo que cada chamada e mensagem daqueles que ficaram te faça sentir um pouquinho mais abraçada. É um grande exercício de paciência (para esperar, para aprender, para adaptar-se, para superar). E é, ainda, uma lição de humildade (ao não saber, ao não poder, ao não conseguir e ao reconhecer a necessidade de pedir ajuda).
Partir é passar por muitas fases. Fase de ter a vida resumida em uma infinidade de papéis, carimbos, autenticações e sempre faltar um selo mais. Fase de caminhar pelas ruas e saber que não irá encontrar com nenhuma cara conhecida. Fase de não ter amigos. Fase de ter amigos e, ainda assim, se sentir só. Fase de encantamento e desilusão com o novo lar (que se alternam em uma dança de cadeiras sem fim). Fase de amar, odiar, arrepender e reafirmar a decisão de ter partido.
Partir é descobrir uma nova forma de existir e de viver. É tentar se encontrar e se reinventar na cultura do novo país. É recriar receitas com os ingredientes tão diferentes, e às vezes estranhos, do mercado. É mudar hábitos, incorporar costumes. É sentir-se estrangeiro e desejar pisar na própria terra. É encantar-se com o novo mundo e não querer largar.
Mas… partir…! Partir também é uma aventura sem fim, uma paixão que nos enche de frio na barriga e de emoções. É uma descoberta a cada nova esquina explorada, um crescimento escondido em cada desafio superado, uma aprendizagem constante! É difícil, é desafiador, é arriscado. E é possível, prazeroso e recompensável! O porquê de partir, entretanto, é assunto para outro texto – e para um momento menos nostálgico…
Para agora, vale ler o texto sobre os 10 motivos para morar na Argentina, da Fabíola Lima, que fala algumas recompensas do ter partido!
¹ Trecho do poema “Receita de Ano Novo”, Carlos Drummond de Andrade
² Trecho da música “Brigitte Bardot”, Zeca Baleiro
2 Comments
muito lindo!! 😉
<3