Muitos leitores me enviam perguntas sobre o funcionamento do sistema de saúde pública finlandês. Por conta disso, resolvi fazer um panorama geral, baseado em minhas experiências como usuária, para que vocês possam ter uma ideia sobre seu funcionamento. Este artigo será publicado em duas partes, pois há muitos detalhes importantes, críticas, experiências boas e ruins que eu gostaria de compartilhar. Portanto, fique de olho em minha coluna no mês que vem também!
Importante mencionar que o país passa por um período de mudanças estruturais em seu sistema de bem-estar, por isso, não irei me ater à administração do sistema de maneira específica, pois ainda não sabemos os tipos de mudanças que ocorrerão.
O órgão responsável pela implementação do sistema de saúde e elaboração das respectivas políticas na Finlândia é o Ministério de Assuntos Sociais e da Saúde. Cerca de 80% do serviço é financiado pelo governo, que usa parte dos impostos recolhidos para este fim.
O sistema de saúde pública finlandês é universal, ou seja, qualquer cidadão residente permanente no país tem direito a usufruir dele assim que obtiver seu número de seguro social.
O governo possui uma agência de seguro social chamada Kansanelakelaitos, popularmente conhecida como KELA, responsável pela coordenação do sistema de contribuição do Estado. Todos os cidadãos residentes permanentes possuem o chamado “cartão do KELA”, com o número pessoal de seguro social. Ele deverá ser mostrado sempre que houver necessidade de cuidados médicos, para adquirir medicamento prescrito de uma farmácia e para quaisquer pedidos de reembolso.
A saúde pública não é gratuita na Finlândia para todos serviços, mas tampouco ela é muito cara, e quem não tem condições de pagar pela conta do hospital ou pelos remédios prescritos, ao comprovar a baixa renda no escritório de serviço social, pode ter tudo ou pelo menos parte das contas pagas por sua municipalidade de residência. Ninguém fica sem cuidados por não ter dinheiro.
Não cobrar nenhum extra por certos serviços ou cobrar pouco, no entanto, não significa que o governo dê algo às pessoas. O que acontece na Finlândia – e nos demais países onde se tem um sistema de bem estar social abrangente – é uma distribuição mais eficiente do dinheiro arrecadado com os altíssimos impostos que são pagos pela população.
O que não se paga:
A saúde é gratuita para menores de 18 anos, exceto no caso de internação por mais de 7 dias e medicações em geral. Durante a gravidez, todo o cuidado pré-natal até o parto são gratuitos, você paga pelas diárias do hospital somente. Escrevi sobre isso em meu texto sobre maternidade na Finlândia que pode ser lido aqui.
Organização do sistema:
Segundo a lei, cada município deve organizar seu sistema básico de saúde com eficiência suficiente para abranger a todos os seus residentes. As municipalidades possuem um número considerável de postos de saúde espalhados por seus bairros e pelo menos um hospital central. Elas têm liberdade para determinar seu próprio escopo de serviços de acordo com o orçamento e a demanda. Geralmente a gama é ampla, incluindo um vasto conjunto de assistência preventiva para menores de idade e gestantes, primeiros socorros, atenção especializada, reabilitação, tratamentos diversos e atendimento odontológico.
Cidades muito pequenas, por conta da baixa demanda, podem relocar pacientes para outras áreas próximas no caso de serviços especializados. Muitas delas também não possuem hospitais grandes, mas normalmente ficam próximas de alguma outra cidade que possua um hospital completo.
De acordo com dados de 2014, o nível de satisfação popular com o sistema de saúde é de 70,4% e são menos de 10% da população que fazem uso do sistema de saúde privado. Apenas 10% dos médicos finlandeses optam por trabalhar somente na rede privada.
No que diz respeito a cuidados especiais, até mesmo os procedimentos de diagnóstico e tratamento mais caros que existem são disponibilizados a todos na rede pública. O acesso ao atendimento especializado, no entanto, requer a indicação de um clínico geral do centro de saúde municipal ou de um médico particular.
Na minha opinião, esta é a questão mais polêmica do sistema, pois para economizar eles te “seguram” o máximo possível com o clínico geral do posto de saúde. No caso de um problema urgente, você é encaminhado imediatamente, mas se for algo que possa esperar ou que possa ser curado aos poucos por um custo mais baixo, mesmo que haja uma opção melhor e mais rápida para você, ela não será dada.
Por exemplo: quando morava em uma cidade do interior, tive uma crise aguda no nervo ciático. Era tanta dor que eu literalmente não conseguia andar. Cheguei ao hospital carregada e lá fiquei na cadeira de rodas. Na emergência você é atendido em ordem de prioridade, por isso esperei uma hora na fila – esperar não me incomoda, mesmo que seja por muitas horas, pois sei que se está demorando é porque tem gente precisando mais do que eu.
Quando chegou minha vez, o médico me examinou, fez perguntas para descartar possibilidades de algo mais grave, me receitou remédios, me deu 15 dias de licença, uma injeção e me mandou para casa. No caso de piora, eu deveria voltar e, se em 15 dias ainda estivesse impossibilitada de me locomover, era só ligar e marcar hora para um novo exame e renovação da licença. Parece ótimo, não é mesmo? O que mais poderia ser feito?
Sinceramente, não sei, não sou médica, mas esse problema perdurou por 8 meses! Durante 8 longos meses tive dores todos os dias. Por um mês, praticamente não andei; depois disso, fiquei 20 dias de muletas e, com o tempo, a crise ia e vinha. Nos dias em que acordava com muita dor, ia ao posto de saúde, recebia uma injeção e 3 dias de licença, além de ter remédios prescritos. Foram cerca de 8 passagens pela emergência e jamais fui encaminhada a um especialista, nunca tirei radiografia ou fiz qualquer exame. Eram só essas mesmas consultas em que o médio examinava, fazia perguntas e medicava.
É assim que funciona. A ordem é economizar o máximo possível e, por isso, tratamentos e exames especializados são feitos somente se o clínico geral entender que você pode estar com um problema mais grave e precisa de algo além de antibióticos, anti-inflamatórios e analgésicos. O perigo desta regra está no fato de que não estamos livres de maus profissionais em nenhum lugar do mundo, por isso, um erro de diagnóstico feito por um clínico geral pode trazer consequências graves por falta de assistência especializada. Não é comum isso acontecer, mas acontece.
Uma vez que cada município determina seu próprio âmbito de cobertura, existe também uma diferença considerável na qualidade do serviço entre eles e há, sim, lugares onde o serviço é ruim.
Por outro lado, conheço pessoas que tiveram casos muito graves como câncer, tumor, cirurgias de emergência e tiveram todo o atendimento necessário. Um familiar, por exemplo, fez uma cirurgia no joelho e a conta total (cirurgia + 5 dias de internação), foi de menos de 300€, com toda a medicação e as refeições inclusas. No caso de um conhecido que teve câncer, por se tratar de um estrangeiro divorciado, a mãe dele obteve visto para ficar na Finlândia cuidando dele durante todo o tratamento. Ou seja, há histórias boas também.
Atendimento emergencial:
Se você precisa ver um médico ou dentista no mesmo dia, a melhor opção é telefonar para a central de sua municipalidade. Você será atendido por uma enfermeira que irá ver no sistema o melhor horário para você chegar e minimizar sua espera. No caso de muita dor, é possível pedir por maca para deitar e medicação analgésica. Se houver quarto disponível, é possível esperar em uma cama. Já passei pelas duas situações.
Pacientes que necessitam de ambulância devem ligar para o número 112, que é de emergência geral.
Atendimento com especialista:
Para ter horário marcado com um especialista também há uma fila por ordem de prioridade. A lei diz que o tempo de espera jamais deverá ser superior a 6 meses, em casos não urgentes. Casos urgentes são imediatos e, se a cidade não oferecer o tratamento ou cuidado que você precise, deverá encaminhar você ao serviço privado. Neste caso, o tratamento será totalmente gratuito para o paciente. No momento, há tanta diferença entre uma municipalidade e outra, que em algumas a espera média pela consulta varia de 3 a 7 dias; em outras, para exatamente o mesmo serviço, a média de espera é de 3 meses.
Mês que vem falarei mais sobre medicina preventiva, tratamentos psiquiátricos e odontológicos, preços e outros serviços que considero importantes. Até lá!
12 Comments
Olá Maila,
Muito importante e informativo seu texto. Ter consciência de como funciona o sistema de saúde do país para o qual se pretende mudar é fundamental e mais importante ainda é ter consciência de que ele não é perfeito.
NO que diz respeito a clínico geral e especialista, aqui na Holanda a problemática é a mesma. Com o intuito de se manter os custos baixos há uma postergação imensa na hora de se solicitar exames ou encaminhar o paciente a um especialista. Inclusive essa é uma discussão atual entre os profissionais da área da saúde aqui. Os especialistas alegam que os clínicos gerais ignoram sintomas que se detectados mais cedo poderiam evitar sofrimento ao paciente e em alguns casos até salvar-lhe a vida. Além disso, há uma contradição entre os tratamentos recomendados por um e por outro, o que acaba por estressar o paciente.
Pelo jeito a discussão será longa. Mas, o fato é que em termos de custos, a tendência e tentar enxuga-los cada vez mais, e a justificativa para isso , segundo a mídia, é a enorme quantidade de novos residentes que chegaram ao país nos últimos anos e que nao contribuem efetivamente no pagamento de impostos por viverem de ajuda governamental.
Complexo.
Veremos o que irá acontecer nos próximos anos.
Muito obrigada Cintia!
Eu já ouvi falar que o nosso sistema aqui se assemelha demais ao holandês. Lendo seu comentário, só tenho que concordar então. Os mesmos problemas que você menciona com relação ao sistema da Holanda são as maiores reclamações daqui também, inclusive a crítica dos médicos especialistas aos clínicos gerais.
Este ano as primeiras mudanças já foram implementadas e a ideia é exatamente enxugar os custos. As justificativas são duas: enorme quantidade de novos residentes que contribuem muito pouco ou não contribuem no pagamento de impostos, e; o número de pessoas idosas aposentadas que, por conta do aumento da expectativa de vida das últimas décadas (as pessoas estão realmente vivendo quase um século por aqui), tem onerado demais o sistema de bem-estar social. Um abraço!
Aproveitando, escrevo sobre minha experiência ( grave) na Finlândia, tive glaucoma e durante 3 anos, os médicos estavam vendo minha visão piorando cada vez mais. Porém, para o sistema, eu sou relativamente nova para ter glaucoma, o que não me garante uma operacão, a menos que tenha perdido 70% da visão. Apesar de ter tido acesso a todos os exames com tecnologia de ponta ( pagos ) a operacão me foi negada. Usei um colírio com remédios especial que me custava 45 euros. Resumo da ópera, não quis esperar perder 70% da minha visão. E literalemnte, paguei para ver. Operei no Brasil. Tentei um reembolso, o que me foi negado, ( Se tivesse, operado dentro da UE, teria pelo menos 5% do valor da operacão reembolsado).
Há 10 anos atrás, quase todos meus amigos usavam a sistema público. Atualmente, poucos usam. A construcão de hospitais particulares está indo muito bem obrigada. E com as mudancas no sistema ( SOTE) tão criticadas, têm-se aberto mais e mais clinicas dos planos particulares 🙂
Obrigada por dividir sua história, Ayla. É exatamente o ponto de maior crítica que faço ao sistema: o que é melhor para a sua saúde não é necessariamente o que o sistema dará a você. Afinal, com 30% de visão você näo fica cega, não é mesmo? Infelizmente o pensamento é este. E é um pensamento bem burro, pois com apenas 30% da sua visão, você fará muito mais uso do sistema do que se tivesse a operação feita, afinal, perderá parte de sua indepenência, capacidade de trabalhar e terá que ter ajuda social para seguir a vida.
Eu acho que estamos num momento bem complexo no que diz respeito a bem estar social. Muitas mudanças irão ocorrer nos próximos anos. Vamos ver se em algum momento vai melhorar, né?
Um abraço.
Se vivessem no Brasil veriam como é “duro” precisar do sistema de saúde pública, Quem não tem um bom plano de saúde (em geral bastante dispendiosos) morre nas filas dos hospitais públicos. Portanto, viva os países de regime social-democrata! Amei mais uma vez seu texto Maila-Kaarina.
Maila, só pra vc ficar tranquila, vou escrever esse breve comentário, rs. Certa vez eu senti uma dor muito forte nas costas e procurei um ortopedista, que me passou apenas anti-inflamatório e não quis pedir nenhum outro exame. Depois de três semanas ainda sentindo muita dor, consultei-me com uma médica muito bem conceituada que me disse assim: Vc acha que três semanas é muito tempo para estar sentindo essa dor? Faz mais de quatro meses que eu estou sentindo dor e tomando anti-inflamatório por causa de uma inflamação no nervo ciático e não tenho a menor ideia de quando é que eu vou melhorar, ou seja, paciência, meu jovem, muita paciência! Moral da história: acho que vc não foi enganada aí não! rs.
Obrigada por compartilhar sua história Jhon!
Eu acredito que no meu caso, de repente, tudo foi feito como deveria ser. No entanto, há outros casos que são tratados com muito pouca ou quase nenhuma importância pelos médicos daqui. Se você ler a segunda parte deste texto, você verá. Mas mesmo assim, eu sou usuária e continuarei a ser do sistema público. Ele pode não ser perfeito, eu posso discordar de vários pontos, mas não acho que os médicos do sistema privado sejam melhores. Sei que não existe sistema perfeito em lugar algum do mundo e sei também que, apesar de tudo, o sistema de saúde pública daqui ainda é um dos melhores do mundo.
Beijos
Olá Maila! Gostaria de saber se existe alguma possibilidade de falar mais com vc sobre o sistema de saúde, tem algum outro canal que possa falar com vc diretamente.Tenho uma dúvida em específico . Aguardo sua resposta obrigada,
Olá!
Você pode me escrever em minha página no Facebook Much More than Santa.
Abs!
Olá Maila, amei o post , mas tenho uma pergunta, em visão geral o sistema de saúde Finlandês é melhor que o do Brasil?
Olá Leo,
Obrigada!
E sim, eu não vejo nem mesmo como comparar. Apesar de o sistema público daqui ter suas imperfeições, como coloquei no texto, existe atendimento e os postos de saúde e hospitais säo muito bem equipados.
As pessoas não morrem em filas e recebem atendimento, há como se fazer todos os exames, enfim, não há como comparar com o Brasil.
Um abraço
Moi Maila ;D, eu pretendo morar ai na Finlândia futuramente, trabalhando como enfermeiro. Vc conhece algum(a) enfermeiro(a) brasileiro(a) que mora ai ? Caso conheça eu ficaria muito grato se vc puder me passar um contato (emal, facebook..) pois eu ainda tenho muitas duvidas e nada melhor do que perguntar pra uma pessoa que já percorreu a estrada que eu irei trilhar ;D