Numa manhã de inverno, Délhi acordou coberta por uma névoa cinza – a poluição e a neblina haviam roubado da Índia suas cores vibrantes, como sempre fazem nessa época do ano. O único conforto vinha do cheiro do café sendo coado na cozinha e da magia dos aromas vindos do chai – chá preto, gengibre, cardamomo, canela, açúcar queimado e leite – preparado pelos vigias na garagem. Não resisti, resolvi abrir a porta da saída de incêndio para sentir mais de perto o cheiro doce da manhã dos indianos.
Um pequeno alvoroço no canto da escada chamou minha atenção e, ao olhar mais de perto, vejo uma gata malhada, esquálida, amamentando um filhote: uma gatinha preta. Voltei para dentro, fechando a porta com cuidado para não a assustar nem chamar a atenção dos vigias. Eu havia decidido: a gata seria meu segredo.
Clarissa ganhou esse nome em homenagem à Mrs. Dalloway de Virgínia Wolf pois, assim como a personagem do livro, era dada a passeios matinais pela cidade, enquanto sua gatinha ficava ali, dormindo na minha porta. Ela amamentava sua filha, eu alimentava a mãe, achando que assim seríamos vizinhas para sempre. Mas um dia Clarissa saiu e não voltou, deixando em minha porta uma gatinha muito escandalosa.
O miado constante ameaçava o meu segredo. Por isso, fiz uso de leite, ovos, atum e tudo mais que a distraísse e a fizesse dormir. Logo o meu segredo estava com uma barriguinha que tinha dificuldades em carregar…
Mãe de uma basset hound de onze anos, eu não sabia muito o que fazer com uma gata. Faltava experiência, até que um dia, quase morro de susto quando uma cabeça surge no degrau de baixo da escada, bem na hora em que eu estava colocando comida para a gata!
“A senhora vai matar essa gata de tanto comer…”
Fiquei chocada! O porteiro do prédio havia me pegado no pulo!
“Você conhece esta gata?”, perguntei.
“Claro, todo mundo conhece a sua gata.”
Fui logo explicando que ela não era minha gata, que eu já tinha uma cadela, que só estava cuidando dela… E ele repetiu, enfatizando que eu precisava parar de dar tanta comida boa para ela, que ela tinha que aprender a se virar, mesmo sendo “moradora do prédio”.
Kali, “a negra” em hindi, ganhou este nome por causa da cor da pelagem e para obter a proteção da deusa Kali, destruidora de todos os males e das ilusões da vida terrena. Foi uma escolha em conjunto: minha, dos vigias e dos motoristas que trabalham perto de casa.
Ela logo passou a fazer parte de uma família maior, que até então eu não conhecia: a Baby e o Kalu são cachorros de rua que moram na pracinha em frente ao nosso prédio, junto com pombas, corvos, gaviões, periquitos, rolinhas, bulbuls e pica-paus que são alimentados todas as manhãs. Moradores e trabalhadores do bairro cuidam, olham, protegem. Em retribuição, eles também nos protegem: Kalu, desde que fomos devidamente apresentados, corre até o carro quando me vê chegar e, se algum estranho se aproxima de mim na rua, rosna.
A relação dos indianos com os animais está fundamentada nos ensinamentos da religião hindu. Não são apenas deuses como Ganesha, com o corpo de homem e cabeça de elefante, ou Hanuman, o deus macaco, que estabelecem esse vínculo. Outros deuses, mais próximos dos humanos, têm em animais específicos seus companheiros fiéis, dando assim o exemplo de afinidade e respeito.
Shiva, o deus das transformações no hinduísmo, tem em Nandi o touro protetor de sua morada. Durga, a manifestação do sagrado feminino em seu aspecto guerreiro, subjuga demônios cavalgando um leão ou um tigre que, para alguns, é uma referência aos gatos. Já Krishna, a divindade hindu mais conhecida por nós brasileiros, era chamado quando criança de Gopala, “o protetor das vacas” em sânscrito.
A vaca é considerada sagrada pelos indianos por sua natureza dócil e por ser uma figura maternal, provedora. Ela fornece o alimento – o leite, que se transforma em queijo e manteiga – e também fertilizante e combustível, por meio do estrume. São vistas constantemente em Délhi em meio ao trânsito caótico, e compartilham o espaço e a miséria com moradores de rua, cães vira-latas e cabras. Assim como estes, dependem da ajuda de outros para sobreviver.
Muitos comerciantes mantêm potes de barro com água na porta de suas lojas para os cachorros, e há sempre quem deposite algum resto de comida ao lado. Para as vacas, alguns oferecem o primeiro pão da manhã, esperando ter seu dia assim abençoado. Sementes para os pássaros são depositadas em praças, muros e até em rotatórias no meio de avenidas movimentadas. Quando surgem os primeiros dias frios do rigoroso inverno em Délhi, surgem também cães e cabras com roupas e camas improvisadas para protegê-los.
Além disso, há ainda abrigos pela cidade conhecidos como Goshalas, destinados ao cuidado das vacas. E mais, no centro da velha cidade, Old Delhi, há um hospital para pássaros mantidos pelos seguidores da religião Jainista, pregadores do princípio da não-violência, que ficou conhecido pelo mundo através do exemplo de Mahatma Gandhi.
Antes que o inverno daquele ano acabasse, perdemos um dos moradores do bairro. Desta vez um humano, uma senhora que tinha um cuidado especial com Kalu e Baby. A perda foi sentida por todos, mas logo uma nova mão se estendeu para cuidar dos cachorros – uma mão brasileira. Do lado de lá da praça, Karin não deixa faltar aos cachorros comida, carinho e abrigo nas noites frias. Do lado de cá, é a outra brasileira que cuida dos gatos – uma família que só cresce, principalmente com a volta de Clarissa e mais filhotinhos…
12 Comments
Que lindo esse post! poderia ter foto da gatinha
Oi, Rita!
Que bom que gostou! 🙂
A foto da gatinha está aqui, bem no começo do texto. A Kali é a filhotinha, pretinha, e a Clarissa, a mãe, a gata maior.
Grande abraço!
Adorei Cris.
Com sua descrição quase consigo ver a cena: a Índia, animais, pessoas, até a energia.
Continue escrevendo. Continuo acompanhando.
Que delícia, Dacy!
Poder trazer vocês um pouco pra perto e compartilhar a minha experiência é o que faz, de verdade, valer a pena!
Obrigada e grande beijo!
Que lindo texto Cris! Saudades….
Meu querido, obrigada!
Muitas saudades deste lado aqui também… E muitas lembranças boas e divertidas pra preencher o coração! 🙂
Um beijo grande!
Que texto lindo, repleto de um olhar delicado e doce para os seres vivos. Em momentos difíceis como que vivemos, é muito bom encontrar esses oásis de sabedoria e amor.
Obrigada 🙂
Obrigada a você, Tita!
Quando o sentimento que corre pelo texto é assim acolhido e compartilhado, ficamos mais próximos. E o mundo parece bem menor e tão melhor! 🙂
Beijo grande!
Que conto lindo!!!!!! Achei Clarissa revolucionária!!!!❤️??
Obrigada, Antoniela!
Clarissa mudou nossas vidas trazendo Kali até nós.
Descobrimos a vizinhança, os animais de rua até então invisíveis aos nossos olhos e que sempre moraram aqui, em frente à nossa janela!
Ah, e é claro, fez com que nos aproximássemos mais dos vizinhos humanos também.
Ou seja, uma revolução e tanto mesmo!
🙂
Querida Cris…. esses textos seus são uma verdadeira viagem ao que você descreve. Ao ler eu me transporto para dentro de sua narrativa e ao olhar em volto é como se estivesse presente neste momento. Cada dia é uma descoberta para você, não?? Saudades!!!
Obrigada, Marcel!
Que delícia pode trazer você um pouco pra perto e dividir a minha experiência, minhas vivências e sentimentos com você!
Isso faz a distância diminuir um pouquinho, não é, meu irmão?
Pode não diminuir a saudade, mas traz sentido às nossas escolhas de vida.
Um beijo enorme!