Meu amigo,
Bem-vindo aos Cárpatos. Aguardo-o ansiosamente. Durma bem esta noite. Amanhã às três horas parte a diligência para Bucovina; há um lugar reservado para o senhor. No passo do Borgo, minha carruagem o estará aguardando e o trará até mim. Espero que a sua viagem de Londres até aqui tenha sido agradável e que o senhor aprecie a estada em minha bela terra.
Seu amigo,
Drácula
Assim começa a aventura do jovem advogado Jonathan Harker pela Transilvânia, tal como descrito nas primeiras páginas de Drácula, novela gótica publicada pelo escritor irlandês Bram Stoker, em 1897.
A história, de escrita impecável e enredo digno das boas produções cinematográficas que a sucederam, conta sobre um país, à época, ainda desconhecido pelo resto da Europa Ocidental; por isso o ritmo de “diário de bordo” da narrativa.
Vamos lembrar que, no Séc. XIX, estavam em alta relatos acurados de viagens e expedições a destinos considerados exóticos. A Transilvânia era um deles e a descrição de suas lendas, paisagens, culinária e trajes confere ao livro o mistério exercido pelo estrangeiro.
E daí vem a maestria! Sem nunca ter colocado os pés na Europa do Leste, Bram Stoker misturou crenças locais com uma certa figura histórica; deu a eles o cenário enigmático de que precisavam e criou um mito: Drácula, o personagem, que nunca existiu em lugar algum, além da rica imaginação de nosso escritor.
Hoje, conto como essa imaginação foi alimentada!
Lenda
Lembra quando falei sobre os livros de viagem? Pois bem, em 1888, a escritora escocesa Emily Gerard publicou The Land Beyond the Forest: Facts, Figures, and Fancies from Transylvania. O livro relata o contato com a cultura local, adquirido no período em que morou em Sibiu, cidade que ainda mantém sua arquitetura medieval. Naquele tempo, Sibiu era conhecida como Hermannstadt e, junto com o restante da Transilvânia, integrava o Império Austro-Húngaro, não existindo a Romênia com a configuração atual, já que essa apenas tomou forma após a Primeira Guerra.
Voltando à narrativa de Emily Gerard, foi lá que Stoker descobriu os famosos Strigoi e Nosferatu, também conhecido como Vampiro! Verdade seja dita, romenos têm fortes tradições camponesas ligadas a supertições. Uma delas são os Strigoi, ou espíritos que vagam sem descanso, assombrando um pouco aqui, um pouco lá; outra, os Vampiros!
Os vampiros narrados por Gerard e aperfeiçoados por Stoker são os que permeiam a narrativa campestre da Transilvânia. Segundo ela, todo camponês acreditava na existência de vampiros.
E quem eram os vampiros? De acordo com Gerard, havia vampiros vivos e mortos. Os vivos eram filhos ilegítimos de pais ilegítimos (um conceito que nem existe mais, o da ilegitimidade filial!). Já os mortos, alguém morto por um Nosferatu que se tornaria Vampiro após a morte, alimentando-se de sangue.
Na trama de Stoker, o Vampiro se transforma em névoa (fenômeno comum na Romênia) e em lobo (bicho ainda hoje existente nas florestas locais); pode ser detido com alho, crucifixos e ramalhetes de rosas silvestres; sendo aniquilado através da estaca no coração, de uma bala abençoada ou da decapitação. Todos esses efeitos foram igualmente tirados do texto de Gerard.
Uma curiosidade: quando se passeia pela Transilvânia, encontra-se crucifixos apregoados em telhados ou esculpidos na fachada das casas. Durante as estações quentes, não faltam rosas por canteiros e portais e, na véspera de Santo André, dia 29/11, os antigos ainda colocam alho atrás de portas e janelas. Dizem que nessa data os Strigoi estão soltos!
História
Mas, nem só de contos se faz uma lenda! Drácula, de fato, existiu, porém, não como vampiro. Estamos falando do personagem histórico que emprestou seu nome à criatura de Stoker, no caso, o nobre Vlad Draculea ou Vlad III ou ainda Vlad Tepes, também conhecido como Vlad, o Empalador.
Príncipe da Valáquia, território onde hoje abriga a capital do país, o nobre Vlad III nasceu no ano de 1431, em Sighisoara, e morreu abatido pelo exército Otomano, em 1476, nos arredores de Bucareste.
Herói para alguns, tirano para outros, Vlad lutou pela soberania de seu território, imprensado que estava entre Húngaros e Otomanos. Seu método para deter os inimigos era feito à moda então em voga na Turquia: a empalação.
Famoso pela crueldade, sua história foi contada em versos e prosas medievais, até encantar nosso escritor, muitos séculos mais tarde. Afinal, o que mais daria fidedignidade à ficção do que misturá-la com pinceladas de realidade, especialmente quando ambas vêm da mesma região!?
Assim, para compor seu Vampiro, Stoker pegou emprestada a fama de mau, a descendência nobre e também o nome e características físicas da figura histórica, já que, ao descrever o personagem usa os mesmos atributos dos retratos de Vlad III.
Outra apropriação foi o nome. Dracul, como o pai, Vlad II, ficou conhecido, designava-o como membro da “Ordem do Dragão”, espécie de sociedade religiosa formada por cavaleiros do Império Romano-Germânico. O símbolo era, naturalmente, um dragão, figura associada, naquele tempo, ao diabo. O filho de Dracul, em romeno, era o Draculea, ou o pequeno dragão.
Cenário
Um dos personagens importantes do livro não é um personagem; no caso, trata-se de uma locação: o famoso Castelo de Drácula, também conhecido como Castelo de Bran, situado no vilarejo de Bran, circunscrito à cidade de Brasov.
A gente já sabe que Stoker nunca pôs os pés na Transilvânia; como teria descoberto esse castelo? Respondo com outra pergunta: lembram dos livros de viagem? Pois é, tudo indica que mais um serviu de inspiração.
O Castelo de Bran ficou conhecido como Castelo de Drácula por ser a construção mais próxima da descrita no livro, localizando-se no topo de um penhasco. Por sua vez, para criá-lo, Stoker teria se inspirado nas ilustrações apresentadas por Charles Boner, em seu Transylvania: Its Products and Its People.
O decepcionante é que, na realidade, a história e a lenda não habitaram no mesmo castelo: se Drácula fez dele seu lar, esse não foi o caso de Vlad III, que nunca morou em Bran.
Chegando em Bran, a vista do castelo impressiona e a ideia de conhecê-lo é divertida, mas nele há poucas referências ao Príncipe Valaquiano e, menos ainda, ao Vampiro de Stoker. Seja como for, visitá-lo no verão faz jus à fama de seus supostos moradores: um verdadeiro inferno, com hordas de turistas presos num abafado de 40 graus.
Romênia magia
Resguardada pelos Cárpatos e suas florestas ainda preservadas, sequestrada do mundo pelos 40 anos da Cortina de Ferro, a Romênia se abre desde os anos 1990, encantando os muitos olhos que dela ainda pouco sabem. São com esses olhos que Drácula deve ser lido e a Romênia, percorrida: olhos de encantamento por um povo extremamente rico!