“Um dia ainda vamos rir de tudo isso” é o titulo do livro de crônicas da jornalista Ruth Manus. “Que genial”, eu pensei quando li a capa. Nada resume melhor a minha filosofia de vida adulta, inteira passada nos Estados Unidos, do que esta frase.
A internet está cheia de histórias de falhas que roubam risadas. Alguns nova-iorquinos, por exemplo, usam o senso de humor, ao compartilhar suas lutas diárias no caos do subway (metrô) através da hashtag #mta. Pais narram os faniquitos de seus pimpolhos no Facebook onde cozinheiros entusiasmados também compartilham as tentativas frustradas de recriar receitas do Pinterest.
Achei que seria uma boa descontração rir um pouco das coisas que não saíram bem como planejamos, mas que são lembretes de que a vida de imigrante, às vezes, pode ser uma comédia. Para não me estender muito, eu vou focar na categoria “meios de transporte”.
Eu vim morar nos Estados Unidos tão deslumbrada que tudo parecia um mar de rosas até eu comprar o meu primeiro carro. Dos perrengues que passei, estes são os que fazem rir até hoje.
Portanto, decidi compartilhar com vocês a verdadeira história da vida e da morte da dupla dinâmica Merçonda & Mirage, os meus primeiros automóveis na América.
Merçonda é o apelido que dei ao Honda Civic 1987, quatro portas, azul acinzentado que tinha o símbolo da Mercedes onde deveria existir o da Honda. Nele não tinha ar condicionado, o rádio não funcionava e sua aparência lembrava o carro do Mr. Bean. Aos meus olhos era um chuchuzinho.
Os tempos eram outros. Eu podia até ter saído de boas condições financeiras, entrado no país pela porta da frente, mas o dinheiro era sempre contadinho. As únicas opções disponíveis que eu tive para comprar um carro eram em um leilão ou de algum brasileiro passando a sua sucatinha adiante.
Comprei o Merçonda de uma amiga por duas parcelas de US$400 dólares. Tinha tanta gratidão por ele me levar para lá e para cá, me libertando da dependência de carona. Ter carro próprio é vida, principalmente no interior do país onde não existia transporte público ou a possibilidade de buscar o pão a pé. Na verdade, nem padaria tinha por aquelas bandas.
Leiam também: Manifesto pelo fim da glamourização de morar no exterior
Eu tirei a carteira de motorista no Brasil dois meses antes de me mudar para os EUA. Gabaritei o teste, inclusive a parte sobre mecânica. Logo, achei que estava apta a encarar todas situações automobilísticas. Que bobinha. O carro era velho e as primeiras estradas em que dirigi eram quase desertas cercadas por campos de algodão. Sem celular, nem orelhão, só com Deus no comando.
Merçonda e eu fomos parados algumas vezes pela policia porque eu vivia esquecendo de acender os faróis. Eu andava com um galão de água no porta-malas porque ele aquecia demais. Dirigia 1 hora e 30 minutos até a universidade duas vezes por semana, adicionando milhas às muitas já percorridas pelos donos antigos.
Fazia um calor do cão no verão da Flórida no dia em que liguei o carro no estacionamento do campus para voltar para casa e a luz do óleo acendeu. Me preocupei e parei no primeiro posto de gasolina que encontrei. Usei o telefone público para ligar para o meu namorado que recomendou não sair de lá sem colocar óleo no motor. Fiquei com vergonha de pedir ajuda. Antes de entrar em desespero, decidi ligar o carro e disse a mim mesma: “se a luzinha acender novamente, eu faço o que ele disse e coloco óleo no motor”.
A luz não acendeu, então, segui caminho. A uns 20 minutos de casa, senti meus pés quentes e o carro perder força. Consegui estacionar antes de ele apagar de vez. Aquela foi a última vez que o conduzi. O motor tinha fundido ou eu tinha fundido o motor. Prefiro contar o que aconteceu na versão voz passiva do que confrontar a verdade de que eu fui responsável pela morte do meu querido Merçonda. Eu ainda guardo o registro dele com carinho porque fez parte do humilde começo da minha história.
Além de perdê-lo, eu estava com um pepino nas mãos: ninguém me daria uma carona porque a universidade e o restaurante onde eu trabalhava eram longe de tudo. O pastor americano, que me tratava como filha, foi quem acabou me emprestando a sua van para que eu pudesse me locomover até achar uma alternativa. Deus, como sempre, estava no comando.
Eu ainda estava de luto pela perda do Merçonda quando o Mirage entrou na minha vida. Uma brasileira deixando o país estava vendendo o seu carro. Cheguei lá com mil dólares em dinheiro, US$100 dólares a menos que o valor pedido e torci que ela aceitasse.
De cara feia, ela me vendeu o seu Mitsubishi Mirage 1990. Apesar de ser três anos mais jovem que o Merçonda, era inferior em categoria. Aquele carro foi o verdadeiro quebra-galho, mas me deixou traumatizada. É o que dá comprar algo sem saber o histórico. Tive que confiar em quem me vendeu e em Deus, né? Como Gilberto Gil diria: “Andá com fé eu vou, que a fé não costuma faiá.”
Leia também: Tudo que você precisa saber para morar nos EUA
Mirage parecia possuído de tanto barulho que fazia. Afogava feito uma Brasília velha, com todo respeito às Brasílias. Fiquei conhecida na vizinhança, porque ele empacava em todo lugar: no mercado, no sinal, na lavanderia, no posto, no trabalho. Assim que pegava no tranco, era beleza, mas quando decidia não ligar, Jesus! Descobri um jeitinho de virar a chave que, às vezes, funcionava e o carro pegava na primeira tentativa.
Quando lembro que dirigia de Pensacola a Nova Orleans para visitar o namorado com o carro naquelas condições, acho uma maluquice. Eu saía de madrugada para não pegar trânsito porque se algum carro aparecesse na minha frente e eu precisasse desacelerar, ele empacava. Era necessário dar em torno de duas voltas na quadra para ter certeza que estava quente o suficiente antes de pegar a estrada. Ah, se meus pais soubessem do perigo…
Mirage também acabou morrendo em minhas mãos um ano depois. A causa do óbito continua desconhecida. Acredito que tenha sido na parte elétrica. Consegui vendê-lo por US$200 dólares para o lavador de louças do restaurante onde eu trabalhava, que vendeu as suas peças para um vendedor de sucata. Quem diria, o cretino sobre rodas ainda salvou outros carros com os seus “órgãos” que prestavam.
Assim como eu, minhas amigas também tiveram carros que pareciam personagens de desenho animado. Em retrospectiva, preciso agradecer à minha família por sempre me manter em suas preces, pois não tem outra explicação para eu sair ilesa de todas as vezes que precisei rir para não chorar ao volante.
E vocês? Já passaram por situações semelhantes? Quem quiser, sinta-se a vontade de compartilhar as suas aventuras conosco nos comentários.