A espiritualidade e suas manifestações culturais sempre foram dois dos meus temas preferidos. Quando eu morava no Brasil ouvia com freqüência sobre o quanto a Europa estava se tornando laica. Os países nórdicos eram sempre citados como exemplo de laicização da sociedade, e sempre se mencionava a transformação de igrejas e prédios religiosos em espacos para as mais diversificadas atividades, desde discotecas até dormitórios estudantis.
Ao lado desses países nórdicos havia também a menção da Alemanha como um lugar onde uma parte considerável da população se tornava declaradamente atéia. O país era citação garantida nas discussoes acaloradas sobre a ineficácia civilizatória das religiões: os alemães, um povo tão organizado e racional, que adora planejamento e organização, seriam representantes da vitória do pensamento racional sobre o misticismo. As estatísticas demonstravam essa tese – e estatísticas provam muitas coisas! Certo? Ou não??
Essa foi uma das minhas maiores surpresas ao compartilhar in loco o cotidiano dos alemães – uma experiência nada comparável a visitas turísticas, mesmo que essas durem algumas semanas. Minha observação pessoal deixou-me uma coisa bem clara: a espiritualidade está muito longe de ser excluída do pensamento e das atitudes cotidianas de uma boa parte do povo alemão.
As estatísticas oficiais trazem sim uma porcentagem crescente de alemães que se declaram “sem religião”, o que leva muita gente a concluir que se trata da opção pelo ateísmo, ou pelo agnosticismo. Mas a pergunta que não deve ser calada é: como são feitas estas estatísticas oficiais, ou pelo menos, de que fontes algumas delas se utilizam?
Começo com uma informação básica: o Estado alemão tem certas características centralizadoras em seu modo de administração da vida pública. Todo sujeito residente legalmente na Alemanha deve ser registrado na prefeitura da cidade onde vive. Esse registro centraliza uma série de gerências: desde os enderecos para a correspondência civil (como aquela referente a eleições) até o registro no plano de saúde público, que é garantido ao cidadão passando pela administração da cobrançao de taxas de servicos dessa mesma esfera, como por exemplo a mensalidade que a família paga para o Jardim de Infância das criancas. Esta taxa, como tantas outras, é calculada a partir da renda familiar: quem ganha mais paga mais.
O detalhe é: esse registro também inclui a escolha religiosa do sujeito. E então temos alguns outros detalhes importantes para entender esse quadro:
1.As opções disponíveis são essencialmente as religiões cristãs, mais especificamente o Catolicismo Romano e o que eles aqui chamam de „Evangelisch“ (e que na nossa língua se trata das religioes inspiradas em Lutero). Vale mencionar que o termo não se iguala ao nosso „evangélico“ brasileiro. Aquilo que no Brasil conhecemos por „evangélico“, aqui na Alemanha leva o nome de „Evangelikal“. Pode ser que recentemente tenham adicionado a opção pelo Islã, uma vez que a quantidade de turcos na Alemanha é muito expressiva. Mas por não se tratar de religião ligada à história e fundamento do Estado alemão, essa conexão com o mesmo, permanece inexistente oficialmente. Assim, fora essas duas primeiras opções, ficam excluídas do formulário todas as outras religiões, e resta ao aplicante não cristão, a opção “sem religião”.
2.Uma vez registrado como pertencente a uma dessas confissões, o Estado automaticamente encaminha a cobrança de uma taxa religiosa ao sujeito. Ou seja, todos os meses será descontado do salário do mesmo uma determinada quantia que diz respeito ao imposto da igreja. O imposto recolhido é encaminhado diretamente para o sustento da respectiva instituição religiosa. Daí sai o pagamento do salário dos sacerdotes e outros funcionários, a manutenção dos prédios religiosos, compra de material, etc.
Um primeiro comentário sobre essa estrutura é sobre a ligação existente entre Estado e instituições religiosas – pelo menos as cristãs. A característica centralizadora do Estado alemão não somente possibilita um controle burocrático sobre a profissão de fé do cidadão (ao menos a profissão declarada), mas ao fazer isso, sugere também uma valorização destas. O Estado auxilia estas instituições em sua administração, e isso pode ser compreendido como um vínculo que as legitima e valoriza, e que as reconhece como parte importante da sociedade alemã.
Um segundo comentário provém de observação direta (embora subjetiva) de quem vive aqui: de fato, muitas pessoas declaram em seus registros que são “sem religião”.
Em um primeiro momento entende-se que essas pessoas podem ter abandonado a igreja simplesmente para não terem mais que pagar o imposto. E sim, esse é o caso de muitas dessas pessoas. No entanto, isso está longe de necessariamente determinar ausência de fé ou de algum tipo de orientação espiritual. Pelo contrário…
Há pouco mais de um ano a revista Spiegel lançou uma edição especial falando exclusivamente sobre a fé dos alemães, e o que os estudos mostram é que a espiritualidade vem tomando maior vulto na vida deles. Porém não se trata de uma religiosidade institucional, e sim mais voltada para a escolha individual, tanto de objetos de fé quanto de métodos para incorporar esta no cotidiano.
Então a pergunta: os alemães optam de fato pelo ateísmo ou as opções deles envolvem um outro sentido, uma outra idéia sobre religião ou espiritualidade?
Para além disso, há muito o que se discutir sobre o que toda essa configuração tem a dizer não somente sobre os alemães mas também sobre a cultura religiosa da sociedade que nós nos habituamos a chamar de “ocidental”…
Fica aberta a discussão! Até o próximo mês!
1 Comment
Ontem mesmo conversava com meu noivo sobre religiao, como eram aqui na belgica, e ele me dizia q a maioria das pessoas nao frequentam a igreja, isso é bem triste. As igrejas aqui sao um deserto do Saara… Bem diferente do Brasil.