Como é ser veterinária na França, no Canadá e em Singapura.
Talvez as pessoas que morem em um só país a vida toda não se deem muita conta de como a nossa personalidade se adapta de acordo com o meio em que vivemos, e no caso do aspecto profissional, não é muito diferente.
O status profissional (ou mesmo o tratamento que recebemos das outras pessoas) também podem nos afetar, de maneira positiva ou negativa.
A veterinária no Brasil
Antes de eu falar da minha experiência pessoal, gostaria de falar brevemente da profissão.
No Brasil, o interesse na veterinária só começou quando o Imperador D. Pedro II, ao viajar para a França de Luís XV, visitou a Escola Veterinária de Alfort. Voltando ao Brasil, tentou criar uma entidade semelhante, mas a primeira escola só foi fundada bem mais tarde, 150 anos depois.
Hoje, segundo o CFMV, são 304 faculdades de medicina veterinária no Brasil, contrastando absurdamente com as 4 escolas existentes na França. Os mais espertinhos dirão que o número é proporcional ao tamanho do país, mas a título de comparação, cabe dizer que no Canadá, apenas 5 universidades oferecem o curso.
Eu me formei no Brasil e trabalhei 4 anos em São Paulo, e em uma determinada época cheguei à atender em uma clínica, um hospital e um pet-shop ao mesmo tempo.
Apesar de todos os esforços para ser uma profissional respeitada, às vezes os proprietários queriam sair sem pagar a consulta, enquanto outros traziam o cachorrinho só para ajeitar o topete (numa clara confusão entre o médico veterinário e o profissional tosador).
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Eu sempre amei viajar, mas nessa época precisava economizar o ano todo para poder passar uma semaninha na Europa. Na verdade, eu me perguntava o tempo todo como é que eu poderia conciliar a minha vontade de conhecer o mundo com a minha carreira na veterinária.
A resposta só veio 15 anos depois, após ter morado (e trabalhado) em 4 países. Só descobri recentemente como viver viajando e hoje já são mais de 40 países visitados.
A veterinária na França
Logo que cheguei ao país, em 2003, percebi que a profissão era vista de maneira muito diferente. Conversando com amigos franceses, sempre ouvi que “veterinários tinham salários melhores do que médicos” e, realmente, não existiam convênios para animais, o número de profissionais era bem pequeno e as escolas, bem seletivas.
Com o tempo fui me dando conta de que os franceses são muito orgulhosos de suas escolas nacionais, e a escola de Alfort, em Paris, não era diferente. Meu objetivo era passar o exame para ser residente e completar o DESV, uma formação de 3 anos (além dos 5 obrigatórios).
Existem várias formações de pós-graduação na França: são as chamadas formações troisième cycle (ou de terceiro ciclo), que resultam na especialização de profissionais em diversas áreas.
O DESV, diploma de estudos veterinários especializados, confere o título à patologistas, oftalmologistas, dermatologistas, entre outros. Em alguns casos, a validação integral do diploma não é necessária, mas a validação de algumas matérias é imprescindível, e se faz em francês (escrito e oral) e também em inglês (escrito).
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Fui rejeitada logo na primeira tentativa, mas não me deixei abater.
Procurei cada um dos professores da bancada e fui pessoalmente pedir conselhos. Entregaram-me uma lista desanimadora de centenas de livros, e também me passaram os contatos dos residentes na época.
Basicamente, apesar do conhecimento técnico, meu nível de francês não era tão bom quanto eu acreditava.
Descobri que eu poderia continuar estudando francês (gratuitamente) em Paris, e lá fui eu! Obs. Esse programa existe até hoje, mas pouca gente sabe!
Voltei no ano seguinte e passei em todos os exames da escola de Alfort. Agora sim, eu era oficialmente médica veterinária residente na França!
Quatro anos depois, eu estagiava como vet patologista na maior companhia farmacêutica da França (área de R&D) e meu salário de estagiária já era quase o dobro do que eu tinha como profissional no Brasil. Infelizmente, circunstâncias da companhia não permitiram que eu efetivasse meu cargo em Paris. De novo mais uma derrota, mas eu não me via voltando para o Brasil.
Nessa fase eu já estava consciente da área em que eu queria me especializar: toxicologia, precisamente em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos. Comecei à enviar CVs para companhias no mundo todo.
A veterinária no Canadá
Acabei contratada à distância por uma empresa americana, que se ocupou do meu work permit e de todos os procedimentos da mudança para Montreal. No final de três anos, eu já tinha o permanent resident card, que equivale ao green card americano.
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Não precisei validar o diploma pois o status de patologista no meu caso era entendido pelo governo como foreign expert. Assim sendo, o salário é ainda melhor do que os dos veterinários clínicos e para ajudar mais ainda, nos primeiros 5 anos especialistas não precisam pagar os impostos na província do Quebec.
O status da veterinária no Canadá, um país novo e composto de imigrantes, é diferente da França, mas ainda assim existem pouquíssimas escolas. Os estrangeiros são obrigados a completar o exame de licenciamento veterinário norte-americano e exame de proficiência clínica para poder exercer a profissão.
Após sete anos de invernos rigorosos em Montreal, eu me cansei da América do Norte.
A veterinária em Singapura
O jogo do LinkedIn recomeçou e eu passei quase seis meses enviando CVs novamente. Então, fui contratada por outra empresa americana em Singapura, para onde arrastei o meu marido e moramos há 3 anos.
Na maioria dos casos, a companhia contratante paga o contêiner e alguns meses de hotel, além de fornecer o EP (employment pass), o visto para trabalhar em Singapura.
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Resumir a situação da medicina veterinária em Singapura, um país de apenas 50 anos de idade, é bem fácil: não existe nenhuma escola ou universidade oferecendo o curso e, teoricamente, somente profissionais de escolas reconhecidas na AVMA (Estados Unidos) e AVBC (Australásia) são reconhecidos.
No entanto, o órgão que regulamenta o exercício da profissão, o AVA (Agri-Food & Veterinary Authority of Singapore) pode julgar cada caso de maneira diferente e, no meu, obtive uma licença parcial (para atuar como veterinária patologista), mesmo se meu cargo na empresa era o de senior scientist.
Os profissionais interessados podem consultar os critérios de candidatura no site da AVA mas, como regra geral, vir à Singapura já contratado ajuda bastante.
Para finalizar, ouvimos constantemente que é muito difícil validar diploma brasileiro no exterior, mas se prestarmos atenção, esse discurso está sempre saindo da boca de quem nunca tentou.
Não digo que seja fácil, mas se você não tentar, nunca saberá. Para quem se interessar, eu tenho uma seção no meu blog, o Tripping Unicorn, que fala sobre a vida expat e o desenvolvimento profissional.
Informação é a melhor maneira de combater a ignorância.
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9 Comments
Adorei seu texto, sua experiência é motivadora! Sou veterinária Tb, deixei o Brasil já 3 anos, fui para os EUA com meu marido e 2 filhas e depois de quase 2 anos morando lá achava que meu sonho em excercer a profissão em terras americanas iria ser um sacrifício muito caro , demorado e ainda sim não ter a certeza que depois conseguiria um visto de trabalho… foi então que decidimos novamente encarar outra mudança e viemos para Portugal… embora parecesse ser fácil a equivalência as coisas não correram inicialmente como imaginei… estou nesse momento em vias de conseguir a minha tão sonhada licença por aqui mas o caminho não foi fácil. Porém só não consegue quem não persiste!
Parabéns pela sua história!
Obrigada Alessandra! Muito legal ler seu comentário aqui 🙂
A veterinária é uma profissão tão pouco valorizada na nossa terrinha, cabe a nós persistir e achar outras vias (algumas vezes bem tortuosas) para conseguir o que desejamos… Coragem e fé, vai dar tudo certo!!Um grande abraço.
Esse texto é incrível, estava há muito tempo em busca de uma informação como essas! Sou veterinária, atualmente moro em British Columbia, e trabalho como assistente de vet. A maior questão é: validar o diploma ou procurar outras possibilidades de trabalhar legalmente como veterinária? O processo é caro e longo, por isso surgiu esta questão! Poderia dar mais informações sobre o processo de ser reconhecida como foreign expert?
Parabéns pela história e iniciativa de publicar aqui!
Oi Karin,
Obrigada pelo comentário. O processo para ser reconhecida como foreign expert parte de dois princípios:
1) Que o seu status seja reconhecido como mão de obra qualificada inexistente (ou insuficiente) no país – no meu caso, expert em patologia toxicológica –
2) Que você trabalhe em alguma área relacionada ao R&D (research & development) ou pesquisa científica, mesmo que em iniciativa privada.
Veja se você pode estagiar ou prestar serviços na área, antes de se candidatar, para adquirir experiência ou algum novo skill. Acho difícil você tentar esse caminho somente com o diploma de vet. Mais informações aqui: https://www.rdpartners.com/tax-holiday-for-foreign-experts-and-researchers/
Boa sorte e abraço ????
Oláa.. estava vasculhando a internet atrás de informações para validar meu diploma na França e, por sorte, acabei caindo aqui!
Sou veterinária, mas sem nenhuma especialização.. Também não tenho a intenção de me especializar lá! Gostaria apenas de ir para trabalhar, em busca de uma valorização um pouco melhor após tantos anos de esforço para me tornar veterinária.
Meu pai mora na França, mais uma razão para me fazer ir!
Gostaria de saber se você teria alguma dica… as informações que encontrei na internet são meio vagas! Os sites dizem que tenho que enviar a documentação e aguardar. Mas até aí… Você saberia me dizer quais as reais chances de conseguir essa validação? Meu francês é péssimo, então até pensei em ir inicialmente para um curso, ficar até me aperfeiçoar na língua, e então tentar a veterinária.. poderia me dar uma opinião?
Aguardo sua resposta! Bjs
Oi Ivana, para competir no mercado veterinário sem especialização (cliníca geral) você precisará com certeza de um excelente francês. Não sei te dizer das tuas chances de ser aceita, até porque essa informação seria subjetiva, mas eu não pensaria em enviar a documentação sem dominar a língua antes. Na França (quase) tudo funciona na base da entrevista. Pense também no seu status legal. Você tem cidadania européia? Sem sim, é um problema a menos para resolver, mas não significa que a validação seja simplificada, até porque se você estudou no Brasil, é a origem do diploma que eles vão considerar. Abraços
Olá Patti, obrigado pelo texto. Fiquei com dúvidas, vc conseguiu fz a residência na França? Esse título de experto vc obteve depois de fz a residência lá?
Olá Patti, boa tarde, estou meio perdida pois quero ser uma médica veterinária, porém quero morar fora, não sei se me dedico ao idioma e a tirar minha cidadania europeia e depois faço a faculdade na Europa, ou se faço a faculdade aqui e depois tento validar meu diploma.
Com a sua experiência achei que poderia me dar uma luz, agradeço desde já.
Olá Mayara,
A Patti Neves, infelzimenteinfelizmente parou de colaborar conosco.
Obrigada,
Edição BPM