A brasilidade que faz falta
Há alguns dias assisti a um vídeo no qual pacientes de hemodiálise de um hospital na Bahia, junto com enfermeiros, dançavam animados uma coreografia de forró, diretamente de suas cadeiras com suas veias conectadas a aparelhos. Foi só abrir o Youtube pra descobrir que o hit “solta a pisadinha” do vídeo virou febre, dando início a uma série de outros vídeos pelo Brasil inteiro e inclusive de outros hospitais.
Ao terminar de assistir aquele vídeo, naturalmente me comovi. Tenho certeza que compartilhei deste sentimento com outros que viram o vídeo – não há como não se encantar com a alegria daquelas pessoas dentro de um ambiente hospitalar nem tão alegre assim. No entanto, o meu sentimento talvez tenha sido um pouco diferente dos demais. Ao terminar aquele vídeo, na verdade, me dei conta que aquilo resumia exatamente tudo que eu sinto falta do Brasil.
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Pois bem, nada como morar numa cidade polonesa para perceber a falta que as brasilidades fazem no dia a dia. Moro numa cidade grande, mas com um grupo pequeno de brasileiros. As raríssimas festas brasileiras que acontecem por aqui são, na maioria, organizada por poloneses, com DJs que acham que música brasileira se resume a clichês e qualquer outra música latina do momento.
Os contrastes são grandes. São longas e antigas as raízes culturais e históricas que moldaram poloneses e brasileiros de formas bem diferentes. De um lado, a contenção e o receio, do outro a espontaneidade e a interação instantânea. Aqui, tenho tudo que é necessário para uma vida tranquila, mas tem coisas únicas do Brasil que me fazem lembrar o quanto gosto de ter nascido brasileira. Não é necessariamente saudade da comida, ou da música, ou da língua, porque é só juntar dois brasileiros que satisfazemos essa vontade. Minha saudade é outra, de uma característica única que nos torna o que somos, do sentimento de brasilidade que ainda é difícil definir, mas que eu posso identificar pela falta que ele me faz.
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Eu sinto saudade das piada de tiozão, tão ruins que só nós brasileiros achamos graça. Sinto falta de falar alto, abraçar desconhecidos, puxar conversa sobre a vida, de criar laços instantâneos com qualquer um, de ser a versão mais espontânea de mim. De contar minha vida pro taxista gente boa e ouvir seus relatos de como a vida tá difícil, mas que o importante é seguir. Saudade de me sentir sempre acolhida em qualquer canto, de fazer amizade até com o pessoal da fila do banco. De chamar os outros de seu Antônio, dona Maria e tio João. De apelidar os outros com palavras nada similares ao seu nome – eu chamo carinhosamente meu melhor amigo de Pneu.
Sinto saudade do verdadeiro boteco e do vocabulário extenso para chamar um garçom: amigo, camarada, campeão – aqui, até em bar chulé a formalidade nos limita para “senhor, uma cerveja por favor’” Saudade daquele empreendedorismo brasileiro, do sushi de leite condensando ao hambúrguer de metro – aqui isso é quase sempre limitado ao que o senso de normalidade permite.
A brasilidade que eu sinto falta está naqueles que celebram o aniversário dentro do ônibus com pessoas que compartilham dele todas as manhãs. Daquele coletor de lixo atleta que entoa uma música feliz enquanto o sol nasce. De dar tchau e desejar um “tudo de bom”. De fazer amigos de verdade no trabalho e conversar toda segunda sobre futebol e a última polêmica do Fantástico. De ir em três aniversários por semana e entoar cinco tipos de canções de parabéns. Sinto saudade até do bolo de metro na praça quando tem aniversário da cidade. Sinto falta dessa união, daquilo que chamamos de popular, do calor humano que transcede naturalmente, da música por todos os cantos.
Essas, entre mil outras, são brasilidades que me deixam saudosista. Mas, na verdade, há uma outra, que eu não necessariamente sinto falta, pois acredito que ela me acompanha sempre. Essa é a brasilidade que eu admiro e que me emociona, aquela que mantém esse povo alegre em meio a tantas adversidades. Um traço de personalidade inimitável, que se aprende unicamente sendo brasileiro. A perseverança inabalável por trás de um país que não perservera tanto. Essa brasilidade que cava aqui e ali uma maneira de sorrir, de esquecer por um tempo a própria tragédia que nos cerca e transformar isso em combustível para continuar vivendo, pois, afinal, o show tem que continuar. Se existe algo mais incrível do que saber deixar esse show continuar, eu desconheço. Do Titanic afundando, certamente somos os violinistas.
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É daqui de longe, cercada pelos meus privilégios, que pude observar como pessoas com condições muito inferiores à minha sabem compartilhar com amor o pouco, ou quase nada, daquilo que tem. Me ensinaram a ser uma eterna embaixadora dessa brasilidade, algo que um dia eu já rejeitei.
Aqui do outro lado há tudo – emprego, segurança, desenvolvimento e viagens, mas há também contenção de sorrisos, conformação exagerada, retenção de espontaneidade, temor ao desconhecido.
Esse tudo que eu tenho ainda não preenche um certo vazio de relações humanas, da espontaneidade e do acolhimento que só o Brasil consegue me dar.
Sei que o momento atual exige crítica e não é por estar distante que romanceio a situação. Acometidos pela baixa autoestima típica do brasileiro, há quem interprete isso como enaltecer o tal povo que só festeja. Reforçar essa imagem é nos colocar em um lugar tão inferior daquilo que merecemos, deixando que outros se apropriem dessa imagem destorcida, para que um dia sejamos discriminados aqui fora por ser brasileiro, pelo que nós mesmos um dia desmerecemos.
Da mesma forma que tenho aprendido grandes valores desses amigos poloneses, estar aqui é a oportunidade de reforçar que nós, brasileiros, temos muito a ensiná-los. Ainda, acredito que temos algo em comum, pois a mesma fé que um dia impulsionou poloneses a reconstruir um país em cinzas é a mesma que ainda faz o brasileiro seguir em frente. Seja por trás de caras fechadas ou de sorrisos, a origem é a mesma, e ela é nossa única arma em tempos difíceis.
Bom, certamente as diferenças culturais exigem respeito e adaptar-se à vida aqui é, também, saber conter as brasilidades. No entanto, não há contenção que nos impeça a entoar um coro no meio de um metrô lotado de Berlim para cantar “Evidências” ou ouvir a playlist “Molejão” e rir incontrolavelmente de memes brasileiros num ônibus silencioso e de caras indiferentes.
Escrevo esse texto sabendo que daqui a exatamente uma semana estarei aterrissando na minha cidade. A chegada no aeroporto será à brasileira e promete a presença de toda a família, incluindo meu cachorro. A vodca polonesa vai na mala e o bom prato de feijão com arroz me espera na mesa. Pra noite, a playlist pagode anos 90 está preparada e o litrão no boteco da esquina lá de casa me espera.
É minha chance de reencontrar algo que só existe lá, de conviver e resgatar aquilo que tanto me faz falta mas que, na verdade, nunca se perdeu.
Te vejo logo, Brasil!
15 Comments
Amei seu texto sobre a saudade do Brasil!Verdadeiro!Minha filha,genro e neta moram em Singapura.Tem tudo isso q vc diz segurança etc etc.Mas nossa brasilidade de conversar com o taxista com o porteiro ê só nossa.Parabens!Moro no Rio de Janeiro no Leblon então vc imagina Qto ê bom!Beijos
Obrigada pelo comentário, Omara! Eu sou a maior apaixonada por essas coisas do Brasil e de ser brasileiro, onde quer que eu esteja elas sempre fazem falta 🙁
Eu nunca vou esquecer de uma das vezes que eu voltei do Brasil. Sete anos de França, acho que uns dois que eu não voltava. Aeroporto, despedida e aquela cachoeira de lagrimas no portão de embarque internacional. Tudo passando pela cabeça: o escambau com emprego, vida estável e segurança, por que eu me imponho de morar tão longe de gente que eu amo tanto, como eu vou sentir saudade de tanto sol… enfim, todos os pensamentos que passam pela cabeça do migrante quando a gente cruza aquela curvinha no portão de embarque e olha pela ultima vez para aquela pessoa que vai fazer tanta falta. (E o olho encheu de lagrima agora) Eu passo pelo detector de metais e as lagrimas gotejando, mantenho a cabeça baixa e enfio óculos de sol tentando salvar alguma “dignidade (besta) à francesa” mas felizmente a gente não nega a origem a as lagrimas começam a cair ainda mais porque eu estou triste e passando vexame em publico.
E eu chego na imigração. A policial federal abre o meu passaporte, olha para o meu rosto, eu abaixo os óculos, os olhos ultra vermelhos, ela carimba o meu passaporte, me olha no fundo dos olhos e fala “Fica assim não! Daqui a pouco você volta para casa!”. Eu meio impressionado respondo que morava fora e que tinha me emocionado. Ela, ainda olhando nos olhos fala “Olha então que incrível! Que oportunidade incrível que você tem, morar fora, conhecer novas culturas… Daqui a pouco você volta de novo de férias e vai estar tudo aqui esperando por você. Amor só aumenta com o tempo, não diminui não.”
ISSO. Saudades. Da empatia brasileira. Desse sentimento de ser “uma pessoa” e não um cliente / aluno / estudante / empregado como a cultura europeia precisa tanto catalogar. Na Europa do Sul existe um pouco mais, assim como no Magrebe. Mas a nossa empatia é a melhor. 🙂 A nossa empatia é aquela que me fez chegar na Islândia e falar “sou brasileiro” para um guia islandês e receber de retorno “O seu pais é incrível”.
Esse Natal eu não volto, resolvi deixar para o Carnaval. Vou passar Natal comendo foie gras, macarons e escargots, bebendo Bordeaux e champagne sentando em uma mesa durante umas quatro ou cinco horas. Aprendi a apreciar e amar isso, a cultura francesa me fez aprender que a vida é curta demais para a gente se satisfazer com nada menos do que o excelente. Mas sentindo saudades daquele olho no olho tão brasileiro onde mesmo um conhecido não tem vergonha de perguntar “Ta tudo bem? Vem aqui, vamos conversar.”
Aproveita. E desculpa pelo textão.
Fernando.
Adorei o texto da Isadora mas me emocionei com seu comentario. incrível a mensagem da policial.. rs é verdade. Nao podemos esquecer o quao incrivel é poder morar fora.. e quantos nao queriam estar vivendo isso
Amo o Brasil, mas as vezes acho que pintamos uma imagem mais bonita quando estamos de fora. Eu nao gosto quando taxista puxa conversa, metro e onibus pra mim eram sempre tao lotados que nao existia a possibilidade de ver alegria em nenhum olhar ali.
Claro, o calor humano, os abracos, “fazer amigos de verdade no trabalho”, tudo isso sinto falta.. mas quando coloco na balanca nao me arrependo da decisao de sair.
Bjs
Oi, Fernando! Vim deixar um comentário pra Isadora, mas não deu pra passar batida do seu.
Também moro na França e também compartilho desse sentimento, o da Isadora, mas principalmente o seu. Amei ler o que você escreveu sobre ter aprendido muito aqui também, principalmente a não se contentar com nada menos do que o que é excelente. Compartilho do aprendizado e, junto com outros pequenos prazeres que vivo aqui, é ele quem me ajuda a olhar pra tudo aqui com um olhar especial.
Esse olhar especial nunca vai substituir a empatia, a resiliência e as trocas brasileiras, mas poder viver um pouco dessas duas realidades é um privilégio. Nossas raízes sempre serão nossas e meu orgulho maior é poder mostrar isso aqui!
Joyeux Noël e curta o carnaval por mim. Eu vou ter que segurar a saudade até o Natal do ano que vem.
Que lindo texto, Isadora! Vc conseguiu colocar em palavras td aquilo que não só eu, mas como muitos brasileiros que moram fora do país se sentem… me identifiquei! E aproveite ao máximo sua estadia no Brasil! E por favor, tome um litrão no boteco da esquina em nome de todos nós! ????????????????????????
Adorei, me identifiquei! Você conseguiu traduzir bem o que é nossa saudade. É de coisas que não podem ser trazidas na mala. Mesmo morando na Itália, sinto a mesma coisa. Saudade, que nos faz refletir: será que tudo isso vale a pena?
Boa viagem Isadora! Nossa Terra natal é a do ❤️. Aqui no Japão, comentavamos uma colega mexicana, casada com japones sobre nossos abraços…etc,etc,etc sempre nos fazem falta. E prefiro sentir essa profunda saudade do que ” me acostumar ” com a cultura local e deixar a brasilidade. Isso nunca ! JAMAIS. Muito pelo contrário ! Não quero esquecer que Chego em São Paulo , entro no táxi e vou conversando com o motorista, peço para matar saudades da querida av. Paulista , portanto faz um caminho que passe por ela toda, até chegar e dizer : – ” o troco é para aquele cafezinho!”. Aqui não tem isso não.
Isadora vc disse simplesmente TUDO!!! ❤️
Li teu texto e estava na metade quando eu pensei: isso aqui está muito familiar, essa guria é de onde? Fui para o final e vi que tu também és gaúcha! Eu sou de Porto Alegre. Que saudade da nossa terrinha, sinto falta até dos lugares. Moro na Tailândia e aqui o povo é receptivo também…. mas “as aves que aqui borgeiam, não gorgeiam como lá” Não se compara ao nosso jeito de acolher. Que bom ler teu texto e me identificar nele. Obrigada!!
Não serei prolixo. Texto muito muito bom. Mais de 5 anos de Polônia e sei bem o que você sente.
Obrigada por esse texto lindo! Ontem estava no metrô e estava pensando exatamente nisso, como a brasilidade é única, vc traduziu muito bem o que eu senti e pensei ontem! Vc escreve encantadoramente!
Parabéns pelo brilhante texto. Voce disse tudo o que eu gostaria de saber dizer. Vivo 33 anos aqui na Holanda, amo este país que me abrigou, mas a “brasilidade” ainda não saiu de mim. Como voce mesma disse, sinto falta da espontaneidade e do acolhimento que só o Brasil consegue me dar. Continue nos deliciando com seus textos. Voce tem talento para escrever e descrever.
Isadora, seu texto mexeu comigo de tantos jeitos. Todos eles maravilhosos.
Eu me vi rindo e balançando a cabeça afirmativamente várias vezes durante a leitura.
Quando você descreveu o vídeo que, pelo que entendi, inspirou o texto, quase chorei por dentro, porque entendi do que ia falar e foi exatamente o que senti vendo esse mesmo vídeo.
Obrigada por essa troca real e compreensiva com a gente.
Curta muito os botecos da esquina, os amigos com apelidos de objeto, as playlists de pagodes dos anos 90, o feijão na mesa, as conexões espontâneas e gratuitas e os abraços apertados.
Poxa que texto sensacional.
Confesso(envergonhado) que também já rejeitei minha brasilidade!
Sou descendente direto de poloneses e lendo acima me encontrei dividido entre dois mundos.
E imagino que isso foi muito melhor para mim. Criado em familia polonesa com direito a todas as tradições, membro de grupo folclorico polones aqui em Curitiba, conversas em polones dentro de casa, mas também aprendendo com a conviver com a malemolencia, com o bom humor brazuca e a flexibilidade de ver a vida como todo bom brasileiro.
Me considero um “brasiles” ou talvez um “Poloneiro” que aprendeu a entender o meio do caminho entre a rigidez e a flexibilidade destes dois povos tão distintos , mas também tão parecidos em vários aspectos.
Já estive em vários países do mundo, mas foi na China que tive meu “ataque” de brasilidade. E quando me vi estava cantando um pagode do Raça Negra no ultimo volume para total espanto e desaprovação dos aproximadamente 10.000 chineses que estavam no mesmo trem que eu estava.
No final do ano chego por ai na Polska, levarei comigo esposa e filho para que conheçam de perto o quão bom e bonito também é por ai!!!