Talvez soe macabro, mas a experiência de um funeral em terra estrangeira pode nos dizer muito sobre a cultura local. Uma pessoa bastante querida por mim aqui em Manila perdeu o pai estes dias e fui convidada a participar dos rituais de despedida junto com a família e amigos. Tristeza à parte, procurei observar como os filipinos lidam com a morte. Acho interessante pensar como o luto se constrói em diferentes culturas. O choro é autorizado? A passagem é vista com mais pesar ou mais leveza? Com essas perguntas em mente, fui prestar minhas condolências numa manhã ensolarada de sábado.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de o enterro só acontecer uma semana depois do falecimento. Em vez da missa de sétimo dia, como seria no Brasil, eles fizeram uma missa de corpo presente seguida de um cortejo até o cemitério. É que a maioria das famílias filipinas tem algum membro morando fora do país, em busca de melhores oportunidades. Por isso o costume de embalsamar o corpo de quem falece e velar em casa durante o período necessário até todos os parentes chegarem. Pode ser uma semana, pode ser um mês. Só depois acontece a missa e o enterro.
A missa se parece muito com uma missa de sétimo dia, com a diferença de que o caixão fica aberto no altar, com um vidro cobrindo o corpo. Em cima deste vidro, fica um porta-retrato com uma imagem da pessoa falecida. No fim da missa, a família e amigos são chamados para o altar e fazem uma fila. Um vidrinho de água benta é passado de mão em mão e cada um joga um pouco sobre o caixão.
Vídeo dos “musikeros” em cortejo fúnebre nas Filipinas
Nos funerais tradicionais, como foi este que acompanhei, há um cortejo que sai da igreja e segue até o cemitério, guiado pelos musikeros, uma espécie de banda militar. Ao som dos instrumentos de sopro, seguimos pelas ruas estreitas de Hulo, em Mandaluyong, um bairro humilde formado em sua maioria por casas e sari-saris (as típicas “vendinhas” filipinas).
Moradores, incluindo muitas crianças, se aglomeravam na calçada para ver a banda passar. O que me chamou a atenção foi o fato de muita gente jogar moedas na direção do cortejo. Perguntei a minha amiga o significado deste gesto e ela me disse que era uma maneira de demonstrar respeito. A família não pode pegar as moedas jogadas. De dentro da multidão, observei que não havia aquele clima pesaroso que costuma marcar os funerais no Brasil. O grupo ia conversando e tirando fotos pelo caminho. Ninguém chorava de soluçar. Era como se eles já tivessem tido tempo de elaborar um pouco mais o luto durante o período em que puderam velar seu ente querido em casa.
Chegamos ao cemitério debaixo de um sol de rachar. O caixão foi retirado do carro funerário e, então, aberto novamente. Familiares aglomeraram-se ao redor e calmamente começaram a retirar as fitinhas roxas que estavam presas com alfinetes no forro do caixão. Cada uma trazia o nome de um familiar. As fitinhas foram colocadas dentro de um saco plástico, que foi enterrado junto, seguindo a tradição. Eles também colocam dinheiro junto, o que é uma maneira de demonstrar respeito.
Após a organização do saquinho com as coisas que também seriam enterradas, finalmente tiraram o vidro que cobria o corpo. Um gesto firme e certeiro. De forma súbita, todos que estavam em volta aparentemente tranquilos, inclusive tirando fotos e filmando, começaram a chorar convulsivamente. Algumas pessoas passaram mal e precisaram ser amparadas.
Foi neste momento que compreendi: a dor estava ali o tempo todo, forte. O momento em que o vidro foi retirado de certa forma autorizou a catarse. É como se a última proteção tivesse ido embora; a última coisa que o mantinha ali, aos olhos de todos, ainda presente. Agora era preciso encarar. O caixão seria fechado para sempre. Dar-se conta do “para sempre” deve ter sido, ali, a raiz daquele choro coletivo.
Fiquei um tempo sentada ao lado da minha amiga, amparando-a. Não havia muito o que dizer. Alguns minutos depois, fomos ao encontro do grupo, que participava do último ritual de despedida. O caixão já havia sido colocado numa espécie de gaveta vertical e cada um jogava uma flor lá dentro, da mesma forma como acontece no Brasil. Ela me confiou uma flor e eu joguei em memória do pai dela, com todo meu carinho e respeito.
Voltei para casa profundamente tocada pela experiência. Pensando que, sim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem. Eu, que tive meu bebê aqui nas Filipinas e pude presenciar o milagre do nascimento nesta terra, pude ver de perto como é encarada a morte. Foi forte. Mas o mais forte foi, diante de todos os simbolismos presentes, ter a chance de ver um pouco do país ser revelado para mim. Sinto-me finalmente mais conectada com a cultura local. Compartilhar a dor, neste caso, me foi uma ponte. É sempre pelo afeto que vamos.