Chegamos ao fim do ano e meu desejo era escrever uma mensagem de paz. “Paz na Terra aos homens de boa vontade” e a todos os outros também. Mas o que isso tem a ver com a Islândia?
Pelo sexto ano consecutivo, a Islândia foi declarada o país mais pacífico do mundo. Este título é concedido pelo Instituto de Economia e Paz (Institute for Economics and Peace) com base nos seguintes critérios: taxas de homicídios, atos terroristas, número de pessoas encarceradas, quantidade de policiais per capta, posse de armas nucleares e instabilidade política, entre outros. Não conheço todos os números, mas a simples ausência de forças armadas, terrorismo e uma situação política relativamente estável falam por si, nem é necessário entrar em detalhes sobre o número ínfimo de policiais e prisões. Parece o paraíso, né? E como isso é possível?
A resposta é bem simples: o islandês é um povo tolerante e não há paz sem tolerância e respeito. Esclareço, aqui, que este é meu ponto de vista pessoal e minhas impressões (subjetivíssimas!), formadas através da observação da vida na Islândia e da sua comparação com a dos países onde vivi. Para que me entendam melhor, vou contar umas historinhas verdadeiras, assim, talvez, consiga ilustrar um pouco da mentalidade islandesa.
1. Muitas famílias aqui são do tipo “patchwork” – sabem, aquela colcha de retalhos? A maioria no meu círculo de conhecidos é assim, alguém sempre tem, no mínimo, uma enteada ou enteado ou está no terceiro relacionamento com família. Uma delas, muito querida, é bem especial: um casal, uma filha do primeiro casamento, mais 3 no atual. Uma dessas filhas é lésbica, casou-se (com uma mulher, obviamente) e agora está grávida. A irmã dela já tem três filhos; o outro irmão tem um filho, também. Todas essas crianças convivem com os avós e tios na maior harmonia. Os primos pequenos (alguns já em idade escolar) não questionam o fato de terem duas tias mulheres, casadas e esperando um bebê. Porque, se você não cresce com alguém dizendo que isso é anormal, você não questiona a normalidade ou não disso, pois isso é, simplesmente, a vida. Nos dias de hoje, – aliás, desde a invenção do “bebê de proveta” – com a facilidade inseminação artificial e o avanço dos estudos genéticos – e até da barriga de aluguel (aqui ainda não permitida) -, praticamente qualquer um pode realizar o desejo da maternidade ou paternidade.
Se um casal homossexual resolve ter filhos, por que não usar dessas maravilhosas possibilidades? Medindo pelos islandeses que conheço, posso dizer que não estão nem aí. Mesmo, de verdade! Ninguém fica discutindo isso; tudo é normal. E ninguém se incomoda ou fica pensando o que seus filhos ou vizinhos ou papagaios vão pensar, porque, contanto que haja respeito, tudo funciona.
A tolerância e boa convivência com famílias gays é a mesma que há com essas famílias “patchwork” ou com qualquer outra família.
As crianças, nas famílias ou na escola, não se importam se a mãe da fulana não tem marido, ou se a sicrana tem dois “papais”, ou duas “mamães”, como costuma dizer a minha filha menor. Com isso não se faz drama, nem piadinha e nem fofoca.
Como, um país sem fofoca?!! Não tem isso aí? Claro que sim, existe até revista especializada, fofocar é humano… Mas esses não são os temas, e isso tampouco é algo importante no currículo de alguém. E, por falar em currículo, aqui está a segunda história:
2. A Ex primeira ministra da Islândia, Jóhanna Sigurðardóttir, atualmente com 74 anos, é lésbica. Foi casada no passado, tem dois filhos do primeiro casamento. Que ela é homossexual é um fato conhecido de todos, mas não é o principal nas notícias, nem nas revistas de fofoca, garanto.
Muito pelo contrário, o apoio a homossexuais e minorias é tradição de políticos aqui. Os prefeitos de Reykjavik sempre desfilam no Gay Pride, bem como personalidades importantes, como o Embaixador do Canadá, que declarou estar orgulhoso de participar da parada com o seu marido numa faixa bem grande, durante o desfile de 2015. E, como eu já mencionei algumas vezes, aqui e neste texto, por exemplo, essa festa é um grande carnaval para famílias, crianças (veja na foto abaixo), gente de todo o tipo, é uma alegria geral e o clima é de confraternização e gratidão.
Mas, como assim, crianças vendo o pessoal gay desfilando e festejando?! Sim, crianças. Vamos à próxima história:
3. Na escola da minha filha mais velha, estuda uma menininha que se veste como menino desde a primeira série (na minha época dizia-se assim). Ela tem uns cabelos cacheados e compridos, mas se veste com calça masculina, boné de beisebol, jaquetas e tênis que se encontram na seção masculina das lojas. E ninguém fica fuxicando sobre isso nos corredores ou entre as meninas. Ela gosta de roupa de menino e pronto. E ela tem pais super bacanas que compram essas roupas como ela deseja e não tentam fazer com que coloque coisas que não quer para agradar ao gosto alheio ou fingir para a sociedade que ela é uma princesinha cor de rosa. Aqui, aqueles pais dos vídeos do Facebook, um que comprou a boneca da pequena sereia para o filho ou o outro que deu sapato listrado pink para o menininho são reais, eles não só compartilham esses vídeos e dizem “lindo”, eles vivem isso. Eu conheço pessoas assim e não são poucas!
Na escolinha da minha filha menor, uma amiguinha dela comemorou os 3 aninhos com o tema “homem aranha”. Achei o convite muito fofo, com a foto da criança e o homem aranha do lado. E a festinha tinha bolo e lembrancinhas do super-herói. E todo mundo feliz!
Um outro amiguinho dela ganhou uma cozinha de presente de aniversário nos seus 4 anos. E ele adora! E os pais compram panelinhas e bonecas, também. Obviamente, as meninas adoram fantasia de princesa e os meninos, de Batman, mas, se o contrário acontecer, o mundo não vai acabar.
E os meninos e meninas aprendem a tricotar na escola, a cozinhar, a fazer objetos de carpintaria etc etc. Meninos e meninas jogam futebol e a seleção islandesa feminina é melhor que a masculina – aquela que encantou o mundo na Eurocopa deste ano. Não estou focando só no homossexualismo, não, mas na igualdade de gênero desde cedo. Não se dividem os brinquedos entre coisa “de mulherzinha” e “só de menino”.
Não estou querendo iludi-los e dizer que esta sociedade aqui é perfeita, muito pelo contrário, há muitos problemas. Bullying, nessas mesmas escolas, é um deles. Somos todos humanos, certas coisas são da natureza humana, afinal, a lista dos 7 pecados capitais tem algum fundamento, não? Se ela foi enviada dos céus ou inventada, algum motivo houve. Eu mesma vivo pecando pela gula…
Parece utópico e vou pontuar aqui que nem sempre é tudo lindo como um arco-íris; também há pessoas e famílias que não se dão bem, apesar de muitas serem bastante civilizadas, até mesmo na convivência com o adverso. A questão é: esta é uma sociedade descomplicada, porque o importante é viver e deixar viver. E o resultado disso é menos criminalidade, mais civilidade, nenhum terrorismo, mais paz. Entenderam?
Feliz ano novo a todos, por um mundo com menos ódio e preconceito e mais tolerância.
2 Comments
Muito boa sua matéria querida Erika Martins Carneiro
Obrigada, tia querida! Beijos