Quando a gente se sente “menos”.
Lucia (*) era uma profissional experiente, com mais de 15 anos de uma carreira que evoluía continuamente. Tinha começado como estagiária em um escritório pequeno e chegou à diretora de vendas em uma grande empresa. Orgulhava-se muito de sua trajetória e de sua reputação no mercado. Todos a conheciam e frequentemente era solicitada para dar conselhos aos mais jovens e a dar palestras em vários cantos do país.
Apesar de gostar muito do que fazia apareceu um projeto muito atrativo – morar fora do país! Seu marido tinha recebido uma proposta de expatriação pela empresa: dois anos na Europa, aluguel e escola das crianças pagos, curso de idioma oferecido….não dava para recusar. E ainda por cima, pensava Lucia, essa era uma oportunidade excelente de crescimento profissional para o marido e de experiência de vida para os filhos. Tendo isso em mente, e consciente de que não poderia manter sua posição na empresa no exterior, ela pediu demissão.
Sua última semana de trabalho foi uma mistura de excitação pela viagem e melancolia por deixar para trás um belo histórico de carreira. “Você certamente vai encontrar o mesmo tipo de trabalho por lá”, diziam os já “quase” ex-colegas, motivando Lucia quando percebiam um olhar de dúvida e receio. E seu coração ficava cada vez mais apertadinho.
O primeiro mês na nova casa passou como um tufão: móveis para comprar, escola e médicos a escolher, aulas do idioma local, reuniões infindáveis nos mais variados estabelecimentos administrativos do governo para conseguir dar entrada em todos os papéis básicos para se viver. A agenda de Lucia era mais ocupada do que quando era responsável por uma carteira enorme de clientes.
Ao final do terceiro mês e, com as coisas bem mais estruturadas, Lucia começou a ter algum tempo livre e a antiga empresa começou a lhe fazer falta. Gostava da rotina de reuniões, apresentações de negócios, discussões com fornecedores, planejamentos e controles. No entanto, não era momento de procurar um novo emprego, pois ainda engatinhava no idioma local. Jamais conseguiria fazer uma entrevista com o nível de fluência que tinha até então.
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Seus dias continuavam ocupados, e a agenda girava entre a escola das crianças, compras, preparação de almoço e jantar, limpeza da casa, estudo do idioma e café com pessoas que ia conhecendo ao longo do caminho. E esse uso do tempo começou a pesar.
Lucia começou a ter a sensação que estava “emburrando”, se é que existe essa palavra e essa sensação. Com exceção do idioma, que avançava a passos lentos, não estava aprendendo mais nada. Quando o marido chegava em casa e lhe contava sobre os desafios e as discussões do trabalho, ela ficava feliz por ele estar se adaptando tão bem, mas batia lá no fundo uma tristeza por não poder estar vivendo a mesma coisa.
Por um lado, era muito bom poder ter a oportunidade de viver coisas novas e valorizar outras tantas que antes nem dava atenção: fazer faxina na casa, por exemplo, pois contar com uma empregada doméstica não era mais possível no novo país. Por outro, esse era um trabalho que não a preenchia. Certamente era um trabalho útil e necessário, mas….
O tempo foi passando e Lucia começou a realmente se sentir mal. Queria urgentemente trabalhar fora de casa, mas ainda não conseguia. Começou a se incomodar pelo fato de apenas o marido ser responsável pelas contas da casa. Sentia-se envergonhada quando se apresentava às pessoas e tentava explicar que era uma profissional de vendas, mas que estava, no momento, atuando como dona de casa. Não alimentava seu networking existente e nem criava um novo. Parou de conversar com o marido sobre o trabalho dele, pois não se sentia “à altura”. Lucia achava que estava regredindo e esse sentimento estava se alastrando por diversas áreas da vida: sentia-se menos como profissional e também menos inteligente, menos interessante, menos alegre, até mesmo menos bonita.
Esse não é um relato verídico; mas, infelizmente, não é falso. Essa sensação de “se sentir menos” é muito comum entre mulheres expatriadas que deixaram de lado o trabalho que faziam para viver no exterior. Eu pessoalmente também passei por esse sentimento, e sei que não é fácil e, quando nos damos conta, ele está ocupando um espaço bem maior do que deveria.
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O primeiro passo para sair dele é acolhê-lo; aceitar o que está sentindo e tentar descrevê-lo da melhor maneira possível. Essa comunicação interna (você com você mesma) é importante para identificar exatamente o que está se passando com você e começar a avaliar as opções que tem. E, por falar em comunicação, o diálogo com o cônjuge é fundamental nesses momentos (e sempre, claro).
Lembrar que a expatriação foi uma decisão consciente dos dois também ajuda muito, removendo a falsa ideia de que um está seguindo o outro. Isso não é verdade, pois a decisão sobre essa nova etapa da vida é do casal, não apenas de uma só pessoa. Ao mudar esse padrão de pensamento, reassumindo a responsabilidade pela expatriação, você ganha em autonomia e isso gera um movimento importante na busca por novas soluções. Isso traz de volta uma boa energia que estava meio adormecida e que lhe será muito útil para criar uma boa nova etapa de vida e viver a expatriação com tranquilidade e interesse.
Você já passou por essa experiência de se sentir “menos”? O que lhe ajudou a sair desse momento complicado? Compartilhe sua experiência. Ela pode ajudar outras expatriadas!
(*) nome fictício
1 Comment
Não passei, estou passando… E me sentindo miserável!… Me identifiquei em algumas coisas com esta personagem fictícia, Lúcia, mas o sentimento mais evidente é de inadequação, não merecimento…