50 dias de protestos no Chile.
Em outubro, completei sete anos morando no Chile. Dizem que este número representa o fim de um ciclo e o começo de um novo, por isso, traz a ansiedade pelo desconhecido. Pois foi justamente em outubro que o Chile começou a viver uma de suas maiores crises política, econômica e social de sua história. Gostando ou não, estou aqui e agora vou contar como tem sido a minha experiência ao longo desses 50 dias de protestos sociais no Chile.
Dia 1
No dia em que começou de verdade a crise (18 de outubro) era uma sexta-feira e eu estava num baby shower de uma colega de trabalho. O bebê nasceu nos primeiros dias de dezembro, um pouquinho antes da hora. Dá para entender a ansiedade dele já que estamos todos enlouquecendo aqui desde que iniciou esse importante movimento social.
Foi nesse dia que várias estações de metrô foram queimadas e um edifício da companhia de energia elétrica também pegou fogo. Depois desses incidentes, o presidente Sebastian Piñera decretou o estado de emergência com toque de recolher. Para mim, que não vivi isso na ditadura militar brasileira, foi um tremendo choque.
Dias de luta
Daquele momento em diante, tudo mudou. Tu-do. Desde as coisas corriqueiras do nosso dia a dia, como comprar pão. Começaram a faltar produtos básicos porque as pessoas surtaram com medo de que a crise durasse muito tempo.
Outra mudança chocante foi o toque de recolher que era anunciado na véspera. Ninguém podia andar na rua depois de uma certa hora da noite. O exército ficou responsável pelo policiamento e pela segurança. Aquilo me deixou num estado de angústia e tensão terrível. Uma sensação muito ruim de ter a liberdade vigiada e restringida.
Depois, veio a resposta à repressão com mais protestos, mais confrontos, mais enfrentamentos e um aumento desenfreado da violência. Se os protestos já não eram pacíficos quando o exército estava encarregado da segurança, a partir do momento em que os Carabineros retomaram o controle das ruas, uma semana depois do início da crise, se instalou uma guerra.
Quem quer criar desordem?
Os chilenos dizem “Chile despertó” (O Chile acordou) e é possível entender as demandas da população. Desde que vim morar aqui sempre achei que o país tinha uma desigualdade social fortíssima. Eu trabalhava dando aulas de português e convivia com gente com muito dinheiro. Ao mesmo tempo, sabia que essa era a realidade de uma pequena parcela da sociedade.
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Os principais problemas da sociedade chilena, na minha humilde opinião, são a Constituição do país – que é a mesma desde o período militar; o sistema de previdência social – que é escandalosamente injusto e perverso; o sistema de saúde e de educação que são totalmente privatistas e excludentes. Dito isso, quero deixar claro que sou totalmente simpática às demandas dos chilenos.
O que realmente me incomodou em todo esse movimento, desde que ele iniciou, foi a falta de articulação política. Embora muitos políticos da oposição tentem reforçar que é um movimento contrário ao governo Sebastian Piñera, é muito mais que isso.
Os chilenos estão com raiva. Estão revoltados. Eles estão orgulhosos desse estado permanente de revolta e desobediência. Consideram legítimo depois de tantos anos comportando-se como o bom menino da escola. O movimento que começou com os estudantes brigando por causa do reajuste das passagens, evoluiu e agora engloba várias demandas.
Recentemente, o movimento feminista abraçou as manifestações e encabeçou a luta contra o patriarcado estatal. O mundo inteiro viu e reproduziu (em vários idiomas e diferentes países) a coreografia do grupo militante La Tesis. Com uma performance impactante, as mulheres naturalmente trouxeram uma nova demanda à lista que a cada dia aumenta.
Do outro lado, o governo endurece. Apesar de acompanhar e ver que o noticiário brasileiro e internacional destacar avanços – como a consulta popular para mudar a constituição, ou a diminuição de salário dos parlamentares-, a resposta do movimento é que essas medidas representam uma pequena esmola por parte do governo.
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Quem ganha e quem perde?
Até o momento, os grandes temas, como a mudança no modelo de previdência social e a sonegação fiscal de grupos empresariais, permanecem intactos. Essa é uma das grandes reclamações dos manifestantes, inclusive para justificar o não pagamento das passagens como forma de protesto, ou os saques. Muitas pessoas dizem que o valor do prejuízo que o metrô e as empresas alegam ter com os protestos não se compara com os milhões sonegados.
Nessa mesma linha, muitas pessoas explicam que os atos classificados como “vandalismo” ao patrimônio não se caracterizam como tal diante da violência sofrida pelos chilenos por conta dos abusos cometidos pelos sucessivos governos (de direita e esquerda) que nunca fizeram mudanças estruturais na sociedade.
Essa é uma análise muito geral e periférica do que está acontecendo no Chile. Não vou me aprofundar neste assunto porque o espaço é reduzido. O que posso dizer é que tenho sofrido – e muito – com a nova situação social do país. O pior de tudo isso é que não existe a menor previsão de que essa situação se tranquilize. Pelo contrário, a curto prazo, dias piores virão. As grandes mudanças tão sonhadas pelos chilenos devem demorar bastante para acontecer. Por enquanto, vamos sobrevivendo um dia após o outro.