Trabalhar em um novo país é sempre um desafio que começa muito antes da busca pelo emprego. É preciso conhecer o mercado de trabalho, as melhores oportunidades e também os procedimentos legais, bem como a legislação trabalhista. Os direitos e deveres de patrões e trabalhadores não são absolutamente universais. Eles mudam de acordo com a constituição em vigor em cada país.
Aqui no Chile, um dos sistemas de contrato de trabalho mais comuns é a famosa “boleta”, também conhecida no Brasil como Nota Fiscal. Mas, ao contrário da nossa pátria amada, abrir uma empresa e emitir “boletas” é bem mais simples e muito menos burocrático.
O primeiro passo é ter em mãos o RUT (Rol Único Tributário), o documento de identidade chileno que também funciona como CPF e que somente é possível fazer após aprovação do visto temporário.
Morei no Chile em 2010, quando vim com meu visto de estudante. Por conta disso, o número do meu RUT permanece o mesmo desde aquela época. Quando voltei a morar aqui, em 2012, solicitei o visto Mercosul e novamente emiti meu RUT. Com tudo isso em mãos, comecei a procurar emprego e logo surgiu a necessidade de emitir boletas.
Já tinha passado pela experiência de abrir uma micro empresa no Brasil com a ajuda de um contador. Também já amarguei o pesadelo de ficar em dívida com a Receita Federal por conta de um problema entre valores declarados por mim e por meu empregador.
Confesso que tinha bastante receio de emitir nota fiscal e, imagine só, enfrentar problemas tributários, dessa vez, em outro país. Mas para minha surpresa, todo o processo foi bem mais simples, aqui.
Pela Internet criei a minha empresa. Entrei no site do Servico de Impostos Internos (Sii), ingressei meus dados e pronto! Minha empresa estava criada. Me registrei como prestadora de serviços profissionais de jornalista e professora de português para estrangeiros, as duas funções que podia desempenhar aqui.
Quando emiti minha primeira nota, veio a dúvida: e agora, como fica o pagamento do imposto? Assim como no Brasil, onde temos o ICMS incidente em cada nota fiscal emitida que varia de cidade para cidade, aqui no Chile, cada vez que você emite uma nota também incide 10% de imposto.
Algumas empresas pedem que você inclua esse percentual no valor da nota para que eles recebam a restituição posteriormente. Em outros casos, você paga os 10% e depois recebe de volta na restituição do imposto. As duas opções estão disponíveis na Internet e o sistema te pergunta no ato da emissão da nota quem vai pagar os 10%, se é você ou a empresa/pessoa para quem você está emitindo a boleta.
Tudo vai depender da combinação que você estabelecer com quem vai emitir a boleta. Quando comecei a trabalhar, dava aulas de português num instituto e o dono, estrangeiro como eu, não pagava os 10%. No final, o valor que ele me pagava era o da boleta e eu tinha esse desconto nos meus pagamentos. Era ruim porque a remuneração era bem baixa, então, qualquer 10% fazia diferença.
Mas tive outro caso de uma grande empresa chilena onde trabalhei por quase um ano dando aulas e também me descontavam os 10%. Só que, nesse caso, além do desconto não comprometer o valor do pagamento, a restituição do imposto foi uma grata surpresa porque te devolvem integralmente o valor descontado.
Aliás, a declaração de imposto de renda aqui é outra maravilha. O sistema é totalmente informatizado. Todas as boletas emitidas ficam registradas e a única coisa que você precisa fazer é conectar-se à Internet e preencher alguns dados. A própria ferramenta faz o cálculo do imposto retido e o valor a ser restituído. A declaração acontece geralmente no início de abril, até princípio de maio. As restituições são devolvidas normalmente a partir da segunda quinzena de maio.
O pagamento integral do imposto descontado acontece desde que você não escolha contribuir com o sistema de previdência chileno gerenciado pelas AFPs (administradoras de fundos de pensão). Como estrangeiro, você pode abrir mão da contribuição ou aderir e ter o valor descontado. Esse é um aspecto totalmente diferente do sistema brasileiro e super importante.
O sistema de previdência social chileno foi totalmente privatizado no governo do general Pinochet. Além disso, o sistema de previdência está vinculado ao de saúde no Chile. A saúde, por aqui, não é universal e gratuita.
Atualmente, estou contratada numa empresa e, nesse caso, tive que optar pelo desconto, no sistema público (Fonasa), ou no privado (Isapres), de 7% do salário. O grande problema acontece quando as pessoas ficam desempregadas e não conseguem pagar a contribuição. Obviamente, isso colapsa o sistema que não dá conta de atender a toda a demanda.
Além disso, o sistema de previdência chileno é uma preocupação no país para os trabalhadores em geral. Todo mundo reclama do preço dos planos de saúde e dos valores descontados. Hoje, apenas seis grandes empresas dominam o setor. No dia 24 de julho, mais de cem mil pessoas tomaram as ruas de Santiago numa grande marcha contra as AFPs.
No caso das aposentadorias, a situação é pior ainda. Recentemente, uma reportagem da Bloomberg mostrou que a previsão de benefício de aposentadoria do Chile, por mês, em média, equivale à metade de um salário mínimo brasileiro. Isso é grave considerando que o Chile tem uma média de expectativa de vida de 80,5 anos – a maior da América Latina. Ao mesmo tempo, quando se trata de desigualdade social,o Chile ocupa o segundo lugar entre os seus 35 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Por isso, é tão importante não só registrar a sua empresa e emitir sua boleta, como também considerar e analisar as opções de contribuição previdenciária e do sistema de saúde – principalmente se a ideia é se estabelecer definitivamente no Chile, o que implica não apenas aposentar-se aqui, mas principalmente utilizar o sistema de saúde, seja ele público, ou privado. Seja qual for a decisão, é bom saber de tudo isso antes de emitir a primeira boleta, mesmo porque a vontade de não contribuir será permitida somente até o imposto de renda de 2018 (exercício 2017). Depois disso, todos serão obrigados a contribuir com as AFPs.
1 Comment
Oi Isabela, tudo bem?
Por favor, voce poderia informar qual é o link da reportagem da Bloomberg sobre a previsão de benefício de aposentadoria do Chile?
Obrigada.