Como é ser cadeirante na Suíça?
O BPM entrevistou a Renata Lobo. Ela é brasileira, sofre de uma condição rara, é cadeirante e mora em Genebra, na Suíça, com o marido e os três filhos. Ela vai nos contar como é o sistema suíço no auxílio aos deficientes. Será que a excelente infraestrutura e tecnologia de ponta supre a falta de calor humano, como nós brasileiros temos de sobra?
BPM – Fale sobre a sua trajetória: de onde é no Brasil, quanto tempo mora fora, países onde ja morou, onde está atualmente, filhos, etc..
Renata – Aos 18 anos sai da minha saudosa Goiânia pela primeira vez. Na bagagem muitos sonhos e a inocência de uma menina. Tinha amigos que moravam em Lausanne, na Suíça. Minha primeira estadia durou 6 meses, voltei pro Brasil com a alma pesada de tanta saudade, era muito nova. Na segunda vez que coloquei o pé na Suíça, conheci o meu marido e desde então cá estou. Moro na Europa há 13 anos. Já morei na França, em Paris e Saint Julien en Genevois, que fica na região de Rhône-Alpes. Na Suíça, em Lausanne e Genebra. Atualmente estamos morando em Genebra. Sou mãe de três crianças de 12, 8 e 2 anos e meio de idade. Fases completamente diferentes que necessitam adaptação e muita energia.
BPM – Você sofre de uma condição rara que está fazendo você perder a mobilidade, como foi e está sendo essa alteração na sua vida e aceitação fora do Brasil, longe da família?
Renata – Perdi meu irmão quando tinha 14 anos, foi um choque emocional muito grande e eu já vinha apresentando alguns sintomas, mas foi a partir dessa enorme perda que eu e minha família tomamos consciência que tinha algo errado. No Brasil vi vários especialistas, fiz muitas ressonâncias magnéticas, era um enigma para os médicos. Não descobriram nada! Quando conheci meu marido, já no segundo encontro, expliquei que tinha algo errado com minha saúde e que até então, os médicos brasileiros não tinham me dado um diagnóstico. Foi aqui que começamos uma longa caminhada, punções lombares perdi a conta de quantas tive, ressonâncias foram dezenas, médicos, vi vários. Durante dois anos e meio os médicos suíços não sabiam ao certo o que eu tinha. O diagnóstico veio em 2008, doença rara, sem tratamento e cura. Me encaminharam para um psiquiatra pois estava um caco psicologicamente e sessões de fisioterapia para reabilitação funcional. Nesse período fui ao fundo do poço, ficou um enorme ”buraco” na minha memória, acho que no fundo quero me proteger desse momento dark da minha vida. O pior não é o diagnóstico, o mais difícil é aceitar que meu corpo se ”autodestroi” (o que chamamos de doenças autoimunes) e que nada posso fazer, só aceitar e tentar viver da melhor forma possível. A aceitação vem aos poucos e acho que nunca será feita por completo, lá no fundo ainda guardo uma esperança de cura… O que nos mantém vivos é a esperança de dias melhores. Estar longe da minha família foi uma barra, mas vou dizer que raramente falo pra eles o que acontece comigo, quero protegê-los de uma certa forma. Estão tão longe e nada podem fazer… Minha mãe morou aqui durante uns 3 anos, ela pode ver e sentir meu cotidiano… A nostalgia do país falou mais alto e ela foi embora. Tem aquele velho ditado que diz: O que não podemos ver, não podemos sentir. Prefiro pensar assim.
BPM – Como é ser cadeirante na Suíça, como a sociedade vê os deficientes? Há problemas inclusivos? Redes de apoio?
Renata – Estou descobrindo aos poucos esse mundo de cadeirantes. Descobri que tenho que ir atrás dos meus direitos, de lutar por eles, nada é de mão beijada. Todo o reconhecimento que tive do Estado foi através de muita garra e determinação. Vendo que sofro de uma condição rara, tive que provar para o governo e para o sistema que ela existia, porque até então eles não conheciam. Precisei fazer laudos e mais laudos, mas jamais me dei por vencida. Com o meu plano de saúde é desesperador. Sempre que eles podem me recusam um tratamento ou algum medicamento, dizendo que não se tem estudos ou uma visão mais ampla do assunto. Se protegem em cima de leis que ainda são falhas, infelizmente. Não é só o meu caso, muitas pessoas passam por essa situação aqui. Sobre inclusão e redes de apoio, ainda sou leiga pra falar do assunto.
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BPM – Você tem alguma espécie de auxilio do governo, por exemplo: pessoas que venham na sua casa dar apoio e ajudar com algumas coisas do dia a dia?
Renata – Sim, tenho uma renda irrisória vendo o custo de vida que temos em Genebra e foram necessários 5 anos de luta pra obtê-lo. Recebo uma renda por invalidez e há 3 anos luto pelo meu direito de ter um complemento que se chama renda para impotentes, que me daria o direito a uma ajuda física. Que uma pessoa possa vir até a minha casa, me ajudar no meu dia a dia, afazeres, etc. Essa ajuda que normalmente eu teria direito vendo minha condição física, foi recusada duas vezes, sabe por que? A enfermeira-investigadora, é assim que eles a chamam, disse no laudo que meu marido mesmo trabalhando à 100% tinha a obrigação de me ajudar, de estar presente no dia a dia pelos meus filhos e que ele havia se casado com conhecimento da minha situação e que não era ao estado de arcar com isso. Eles usaram o termo obrigação matrimonial… Foi e é revoltante. Acumulo laudos e espero confiante que dessa vez esse auxílio saia. O sistema é de embrulhar o estômago.
BPM – Como é a mobilidade urbana para os cadeirantes? As ruas tem acesso? Como é o transporte público?
Renata – E muito raro quando eu utilizo o transporte público, tenho um carro adaptado com um braço mecânico para descer e subir a cadeira de rodas, então é mais prático pra mim. Mas ônibus e trens são adaptados para cadeirantes com uma rampa para facilitar o acesso. Em Genebra temos muitos prédios do inicio do século XX, onde os elevadores são pequenos e que, na maioria das vezes, a cadeira de rodas não entra. Às vezes, em prédios administrativos, como bancos por exemplo, tem sempre aquele degrauzinho inofensivo para pessoas “válidas” e um verdadeiro quebra cabeça para deficientes físicos. Chama um daqui e outro dali pra levantar a cadeira e passar esse ‘’inofensivo’’ degrau. Não é raro isso acontecer. A maioria das ruas e calçadas são acessíveis, as portas são automáticas ou com a maçaneta um pouco mais baixa. Supermercados e shoppings são acessíveis. Também é possível pedir uma chave exclusiva para deficientes em uma associação para pessoas com necessidades especiais, que dá acesso a estacionamento gratuito, banheiros adaptados e elevadores para cadeiras de rodas.
BPM – Como é o seu dia a dia sendo mãe de 3 filhos?
Renata – Além de sofrer de uma patologia rara, tenho também dores crônicas. Quanto mais sou solicitada fisicamente, mais dores eu sinto. Dependendo do meu estado fisico é bem complicado dar conta da prole até o fim do dia. Sempre me levanto as 6h30, preparo o café para a turma, acordo todo mundo, preparação e 07h30 os maiores vão pra escola sozinhos. As 08h30 nossa fadinha (babá) vem buscar a caçula pra levar para a creche, isso três vezes na semana, duas vezes durante a semana a caçula fica em casa. Durante a semana os meus filhos vêm almoçar em casa. Todos os dias eles tem alguma atividade extra escolar. Entre fonoaudiólogo, judô, natação e meus estudos a agenda esta sempre cheia. Prefiro assim, já tive aquele período de depressão total que não saia de casa.
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BPM – Você se sente confiante sendo cadeirante na Suíça ou acha que teria mais chances e oportunidades se estivesse no Brasil?
Renata – São países completamente diferentes, é difícil comparar nesse ponto. Tem sempre um ponto positivo e um negativo. Eu diria que a Suíça me acolheu, mesmo o sistema sendo como ele é, uma batalha constante. Tenho sempre que comprovar a minha deficiência o que é muito cansativo psicologicamente, para ter acesso por exemplo a esse auxílio que citei acima, já se vão três anos de luta. Os tratamentos que tenho acesso aqui, não se comparam ao Brasil. Acessibilidade, tratamentos, enfim, a Suíça tem mais infraestrutura. No Brasil o que falta em infraestrutura sobra em calor humano, aqui não é o caso, aqui é cada um por si.
BPM – Você faz parte de alguma rede de apoio com pessoas que tenham o mesmo tipo de condição? Se sim, qual?
Renata – Não, por enquanto não me sinto preparada.
BPM – Se você pudesse dar uma nota de 0 a 10 à Suíça pela maneira que trata os cadeirantes e pessoas com deficiências físicas, qual seria?
Renata – Daria 5, sou considerada uma pessoa inválida e desde então um zero a esquerda pra sociedade. Nunca me olharam como uma mulher digna de respeito, na maioria das vezes o que vi foi com descaso. Nunca me valorizaram por ser mãe e o que estou construindo para o futuro da sociedade, me veem com um peso para o Estado, digo financeiro. No mês de janeiro tive uma pequena vitória e espero que o sistema um dia mude. Vou explicar: Em Genebra, não sei em outros cantões, uma pessoa com deficiência física tem direito a uma cadeira de rodas se ela não exerce nenhuma atividade lucrativa, mas se ela trabalha fora ela pode ter uma segunda cadeira, que por exemplo fique no trabalho, ou que fique no carro. Eu não trabalho fora há 4 anos mas mesmo assim fiz o pedido ao Estado de uma segunda cadeira, me recusaram. Escrevi de novo e perguntei o porquê do meu papel como mãe e estudante não era reconhecido. Justifiquei que estava sempre dirigindo, estudando e necessitava de ter uma cadeira no carro e outra em casa pra facilitar o meu dia a dia. Tive ganho de causa. Pra mim é uma pequena grande vitória. Mês que vem terei uma vaga de cadeirante para estacionar o meu carro em frente ao nosso apartamento, eu que fiz o pedido à cidade de Genebra, e depois de 8 meses obtive uma resposta positiva. Como sempre digo, nada cai do céu.
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Renata – O que eu aprendi como mulher, brasileira e cadeirante, é que tenho tudo pra vencer. Basta querer. Não foi e não é fácil minha vida como expatriada e agora como cadeirante. Criei meu lugar aqui, antes me achava um peixinho fora d’água, hoje não. Me adaptei a esse País, a sua beleza, mas não a sua frieza. Sempre que posso mostro meu lado brasileiro que antes escondia. Antes meu sotaque goiano me envergonhava, hoje não mais, ele é minha riqueza, mostra de onde venho, minha caminhada, minha luta. Muitos brasileiros aqui têm vergonha de suas origens, eu já tive. Hoje vejo que foi uma coisa boba, coisa de mente pequena. Vergonha, nunca mais! Orgulho, sim, muito orgulho. Somos guerreiras, saímos da nossa zona de conforto, da nossa pátria amada e estamos aqui, lutando. Viemos por amor, talvez por uma melhor qualidade de vida ou estudos. Onde quer que você esteja, orgulhe-se da sua história, do que você construiu, tudo é um eterno aprendizado e estamos em constante evolução. Obrigada pela oportunidade de compartilhar minha história com vocês, grande abraço.
Renata, muito obrigada pela honestidade na entrevista. Só posso te desejar muita saúde conquistas no futuro!
4 Comments
Será que a Renata ja ouviu falar do protocolo Coimbra, um tratamento de altas doses de vitamina D que melhora, e até para, todas as doenças auto-imune? Pede pra ela pesquisar sobre isso na internet e em grupos do face, Ann, por favor. Na torcida por essa guerreira. E parabéns pela entrevista 🙂
Oi, não eu não conheço, vejo meu neurologista essa semana e vou conversar com ele sobre isso. Obrigada pelas palavras.
Olá,
Achei maravilhosa a sua descrição em detalhes de como é a vida de uma cadeirante estrangeira na Suíça. A gente sempre tem a impressão que nos países mais desenvolvidos a questão de deficiência física seria mais respeitada, mais reconhecida do que no Brasil, mas vejo que não é o caso. Nada é perfeito em lugar algum, mas é difícil de acreditar que diante do desenvolvimento um país como a Suíça não forneça maiores benefícios para os portadores de deficiência física. Fica a pergunta no ar : Não importa o nível de desenvolvimento de um país, o preconceito contra as pessoas deficientes vai sempre existir? Vamos esperar que não.
Muito bacana a sua disposição Renata em nos contar da sua experiência.
Olá, a gente so conhece esse tipo situação quando a vivemos na pele. Eu nunca imaginei que encontraria aqui todas essas dificuldades por ser um país de primeiro mundo, engano meu. Estou aprendendo um pouco mais a cada dia e me fortalecendo com as adversidades.
O preconceito ainda é palpável, infelizmente.
Um abraço