Como é ser gay no Canadá?
Na coluna de entrevistas de hoje, o BPM conversou com a Julia, que mora no Canadá, é gay, casada, e fala sobre a vida no país tão conhecido pela sua tolerância e respeito à individualidade.
BPM – Você já morou em Doha e agora está no Canadá, os dois países são pólos extremos no sentido tolerância, como foi a transição e quais as diferenças?
Julia – A mudança de Doha-Qatar para Vancouver- Canadá foi realmente bastante drástica (no bom sentido). No Qatar é proibido ser homossexual, sabendo que poderia ser presa ou deportada do país, é preciso mentir, omitir e disfarçar. Apesar de ter conhecido pessoas que me confessaram também que eram homossexuais ou bissexuais, era um assunto muito complicado de ser conversado. Eu só comentava da minha vida pessoal para quem realmente eu confiava e amigos íntimos.
Não existe nada pior que viver se escondendo e sentindo medo o tempo todo por uma coisa que você é. Por ironia do destino ou coincidência, eu conheci a minha atual esposa na região, quando fiz uma viagem até Dubai. O nosso namoro, como vocês podem imaginar era praticamente dentro do armário, até as nossas fotos ou cartões com declarações tinham que ser escondidos quando a faxineira ia em casa.
Morar no Qatar nunca tinha sido um plano para a vida toda, mas chegou um momento que começamos a fazer planos de morar juntas, casamento e constituir família, então tivemos que colocar um fim no Oriente Médio e começar a pensar em um lugar totalmente oposto, esse país era o Canadá.
Agora que já passaram quase 5 meses que estamos aqui, o Canadá ainda cumpre e supera às nossas expectativas. Além de ser um país acolhedor para imigrantes e refugiados, é também acolhedor para a comunidade LGBTQ.
BPM – Como a sociedade canadense vê a comunidade LGBT?
Julia – Ser gay é como ser um cidadão como qualquer outro. O tratamento é indiferente se você for gay ou não. Por enquanto só temos a elogiar a sociedade daqui, além de educados são muito respeitosos também. Claro deve ter algumas pessoas que se incomodam, mas que não falam nada. Enquanto 80% é a favor de relacionamentos homossexuais, apenas 14% são contra. Digo “apenas” porque se for comparar com o Brasil, a estatística de rejeição sobe para 36%, veja aqui as estatísticas.
Cada um cuida do seu próprio nariz aqui e não existe muito julgamentos. Vancouver é uma cidade bastante miscigenada, existe pessoas vindas de muitos lugares, acredito que por conta dessa mistura cultural, as pessoas tendem a se importar menos com o que o outro faz ou deixa de fazer. O resultado é uma sociedade tolerante e que apoia as minorias. A participação em peso do público, de empresas, ONGs e até igrejas na Parada Gay prova esse suporte e respeito em relação à comunidade LGBTQ.
BPM – O governo oferece algum apoio? Há comunidades, associações, organizações para apoiar principalmente os jovens?
Julia – A legislação canadense é um pilar central dessa sociedade tolerante. As leis são bem severas com relação a discriminação. Sendo assim os possíveis preconceituosos se calam ao invés de discriminar. Por outro ângulo, os LGBTQs ao ter acesso aos direitos civis se sentem mais amparados e seguros. No processo de imigração, o governo não só considera, mas também ajuda a comunidade LGBTQ. No nosso caso, minha esposa já tem o visto e eu não, ao demonstrar que ela é minha esposa e que eu quero acompanha-la, o
governo tende a me dar o visto também. Também existem pessoas que são recebidas porque são refugiadas LGBTQ, como o caso de Justin Romanov, um russo que imigrou para o Canadá por este motivo. A inclusão social também é defendida por diversas organizações não governamentais e associações. Muitas delas praticam apoio aos jovens, trans e gays moradores de ruas. Algumas delas são: a Egale e a CRRF. Aqui existem muitos trabalhos voluntários e pessoas que querem ajudar essa causa.
BPM – Você já sofreu discriminação, no Canadá, por ser gay?
Julia – Aqui no Canadá, pelo menos em Vancouver, casais podem andar de mãos dadas, abraçar ou dar selinho em qualquer lugar. Muito melhor do que São Paulo, onde um casal pode levar uma lampadada na cabeça ou sofrer discriminações mais severas. Porém, em qualquer lugar a discriminação e o preconceito tem várias facetas e categorias. Acredito que infelizmente, qualquer lésbica, gay ou trans já tenham vivenciado algum tipo de diferenciação.
Por aqui os julgamentos e diferenciações são mais discretas, mas ainda existe não posso mentir. Apesar de não ser grave, ainda existe e é notório diferenças de comportamentos
quando falo que não tenho marido e sim esposa, ou quando o vendedor de camas percebe que somos um casal e não irmãs ou amigas. Mas de um modo geral, ainda não sofremos nenhuma discriminação mais séria, também não nos sentimos ameaçadas, espero que continue assim.
BPM – Há alguma diferença entre a geração mais velha e os jovens em relação a comunidade LGBT?
Julia – Sempre existirá uma diferença na percepção entre pessoas de diferentes gerações. Mesmo a geração mais velha tem mente aberta aqui, eles veem gays como pessoas comuns e não promiscuas ou coisa do gênero. Isso aqui onde eu moro, onde é mais central, lugares afastados devem ter pessoas com mentes mais fechadas. Foi nessa região que aconteceu a Parada Gay também, e vi tanta gente de uma geração mais velha
assistindo o desfile que até me emocionei.
Um dia vi uma situação engraçada: um homem de grande porte e bigodes grossos estava vestido
com um tutu de bailarina, milhares de pulseiras e um belíssimo enfeite na cabeça. A senhora de idade perguntou com a maior delicadeza qual era a ocasião que ele se vestia assim, ele riu e respondeu para ela que ia fazer uma filmagem. Foi diferente porque nunca tinha visto uma senhora de idade puxando conversa com um homem transvestido.
BPM – No caso de transexuais e operação de mudança de sexo. Como são as opções e como funciona no Canadá? É coberto pelo governo? A partir de que idade é permitido?
Julia – Ainda não tive a chance de conhecer nenhum transexual, mas sei que aqui as leis mudaram recentemente quanto aos direitos deles. A C-16 veio para abranger os T’s nas leis criminais, pois antes muitas das leis só iam até a orientação sexual e não incluía eles. Como muitos lugares no mundo, as leis para trans são mais atrasadas e caminham muito mais devagar. É muito triste pensar que por esta mesma razão que muitos tentam suicídio.
Segundo pesquisadores da Western University of London, em Ontario 35.2% da
população trans já pensaram seriamente em se matar, enquanto 11.2% tentaram cometer suicídio no ano passado. Concluindo, é muita gente que ainda se sente oprimida.
BPM – E no ambiente de trabalho, você acha que a sua sexualidade é relevante ou apenas a sua formação/aptidão profissional?
Julia – No ambiente de trabalho, a legislação também funciona. Assim sendo, funcionários gays não precisam ficar omitindo sobre seus relacionamentos. Eu ainda não estou
trabalhando, então vou usar o trabalho da minha esposa como exemplo. Lá desde o primeiro dia ela falou que tinha uma esposa e eles levaram numa boa, como se estivesse falando que ela prefere rock ao invés de funk. Também tenho amigos que são assumidos no trabalho e nunca sofreram nenhum tipo de discriminação. Porem existem situações como o caso de uma amiga: o chefe dela é do Afeganistão e tem mais dificuldade de entender que ela é casada com outra mulher, mas não é por esse motivo que ele deixa de respeita-la e trata-la como qualquer outro funcionário. Há poucos casos de empresa não canadenses que tem mais conflitos culturais. De novo se for comprar com o Brasil, o Canadá esta mais avançado porque não faz nenhuma discriminação para demissões e ou contratações.
No Brasil, segundo a Carta Capital, 20% das empresas ainda se recusam a contratar homossexuais
BPM – Sendo o Canadá um país enorme, que estado/cidade canadense é mais simpático ao movimento LGBT?
Julia – As cidades mais abertas em relação ao publico LGBTQ são Vancouver, Toronto, Montreal e Calgary. Toronto é onde acontece a maior parada gay do Canadá e foi eleita uma das cidades mais “gay friendly” do mundo. Vancouver também é uma cidade bastante inclusiva como já foi mencionado anteriormente. Os habitantes daqui tem fama de “desencanados”, basta ver o processo de legalização da maconha que vai sair no ano que vem.
Tudo indica que a província menos amigável parece que é Manitoba, o Texas do Canadá, ainda há homofobia em grande escala por lá.
Leia a entrevista com a advogada Vitória Nabas, de Londres!
BPM – Que dicas você daria para os leitores LGBT do BPM, se estiverem pensando em ir morar no Canadá?
Julia – Eu diria, venha para o Canadá ser feliz, bi. Piadinhas a parte, sem duvida alguma este é o melhor lugar para ser gay que eu já morei e provavelmente, um dos melhores lugares do mundo.
Você ira perceber que aqui as leis funcionam e a segurança vem à tona; onde tem segurança tem liberdade; onde tem liberdade tem pessoas felizes; onde tem pessoas felizes tem qualidade-de- vida.
Pode ser clichê, mas aqui sim é o lugar que você pode ser você mesmo. Convenhamos que não há nada melhor do que poder se libertar e poder gostar de quem a gente quiser. Eu sou a prova viva, vindo de um extremo para o outro no sentido de liberdade, que isso nos importa muito.
Ter o seu exterior unido com o seu interior é um dos melhores presentes que a vida pode te dar!
Obrigada, Julia, pela excelente entrevista. Só posso te desejar felicidades com a tua esposa no Canadá!
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valeu por essa postagem