Quando, em 2010, o vulcão Eyjafjallajökull cuspiu cinzas e paralisou praticamente todo o espaço aéreo europeu por dias seguidos, os jornalistas se viram aflitos para pronunciarem essa palavra enorme nas TVs e rádios do mundo. Isso foi uma pequena amostra do que é a língua islandesa. E essa não é uma palavra das mais complicadas, não…
Antes de contar mais, preciso fazer um desabafo, uma confissão: eu não falo islandês direito e me sinto muito mal por isso. Eu falo outras línguas e sou muito perfeccionista, então, morro de vergonha do meu islandês básico, cheio de sotaque e macarrônico. Devo soar como o Tarzan para eles, “Mim, Erika, tu, Jane?” Isso dá uma sensação de impotência, uma tristeza, às vezes, e o caminho é duro e longo.
Você alguma vez já chegou ao fim do dia desejando falar a sua língua materna porque passou o dia falando outra(s) e está com dor de cabeça? Já namorou em outra língua e quebrou um clima romântico porque não se expressou direito em outro idioma? Ou alguém lhe perguntou: “Você quer queijo OU geléia?” e você respondeu: “Sim!”, não tendo a menor ideia do que se tratava?
E esta foi recentemente: conversando com uma senhora idosa que conheci na rua, eu tentava ser simpática e fingia que a entendia repetindo “sim, que ótimo”, “ah, mas que legal”, etc. Digamos que eu só “pescava” um adjetivo ou outro, como “bom” e “talentoso”, nas falas dela. Aí ela fez uma pausa incomum e falou, bem claramente, “ele morreu”. E eu já ia repetir “mas que ótimo!”, quando percebi que ela estava falando dessa morte o tempo todo. Que vergonha!
E é isso que acontece sem a língua; mal dá para participar dos acontecimentos da sociedade em que se vive, defender-se de ofensa ou preconceito, reclamar de um iogurte vencido ou do troco errado no supermercado. Lembro que um dos dias mais alegres da minha vida na Alemanha, foi quando consegui responder, “de igual para igual” ao motorista de ônibus mal humorado de Berlim – os berlinenses têm fama de serem pouco delicados. Depois de três meses morando lá, já sonhava e, pouco depois, escrevia em alemão. É uma sensação tão boa, de ser alguém, de existir…
Língua também é a sua identidade. Como tradutora, tornei-me muito exigente e crítica, acho que você só pode dizer que fala uma língua quando é capaz de entender as piadas e a mentalidade do lugar onde ela é falada. Aqui na Islândia, eu ainda me sinto como a pequena sereia daquele conto de Hans Christian Andersen, que quer falar, mas ficou muda depois de um trato com a bruxa do mar – e provavelmente não dominava nenhuma linguagem de sinais. Eu gostaria de contar minhas piadas, opinar sobre a crise da Grécia e da Síria, ou sobre o sistema de saúde daqui, mas ainda me falta muito vocabulário. Então, volto para o inglês e acabo não aprendendo mais.
Um francês ao contrário
Ao contrário do francês, cuja maioria das palavras tem a última sílaba tônica, no islandês, a sílaba mais forte é sempre a primeira e fica difícil memorizar a palavra inteira, porque os nativos tendem a “engolir” os últimos sons. O pior é que, justamente no fim das palavras, estão marcados o gênero e o caso, ou seja, a função da palavra na frase. A gramática é parecida com a do latim e a língua pouco mudou nesses mais de 1.100 anos de registro escrito. Então, é como se a gente ainda estivesse falando “lupus agnum mordet” ou “dura sed lex” no dia a dia, mas com um vocabulário germânico antigo.
Os islandeses são orgulhosos da sua língua e tentam preservá-la ao máximo. Anglicismos são raros e, para cada palavra latina assimilada em diversos idiomas, como, “informação” ou “táxi”, por exemplo, existe uma correspondente islandesa, respectivamente “upplýsingar” (literalmente “descrição para cima”) e “leigubíl” (“carro de empréstimo”).
Os números são declinados até 4, ou seja, mudam de forma de acordo com a função na frase e o gênero da palavra que acompanham. Assim como temos “um” e “uma”, “dois” e “duas”eles têm um, uma e mais uma forma neutra que não dá para traduzir. Mas também com o três e o quatro. É como se a gente fosse dizer “trêsa” (3) caixas de fósforos ou “quatra” (4) meninas.
Os nomes próprios também mudam de forma, eu sou Erika como sujeito da frase, mas, se estão falando de mim, eu viro “Eriku”. Até aí, tudo bem, mas e um nome como Anna, que vira “Önnu” quando a gente diz “isso é da Önnu”?!
E por falar em nome, há uma comissão nacional para nomes que decide quais os permitidos para cidadãos islandeses. Esses constam numa lista e geralmente são nórdicos ou bíblicos. Quem escolher para os filhos algum nome fora da lista deve registrar pelo menos um segundo nome oficialmente islandês, como nesta combinação: Clarice (estrangeiro) Hildur (nórdico). Sim, Hildur é um nome de mulher, assim como vários nomes são muito semelhantes nos dois gêneros: Arnar é homem, mas Arna é mulher. Helgi é homem e Helga é mulher. Mas, se eu disser, isso é do Helgi, o nome dele vira Helga.
E ainda há os “sobrenomes” na Islândia, ou melhor, os falsos nomes de família. O falso sobrenome é formado pelo primeiro nome do pai ou da mãe da criança, mais um sufixo “SON” , filho, ou “DÓTTIR”, filha. Por exemplo, se o senhor Helgi Arnarsson (Helgi= primeiro nome, Arnarsson= filho do Arnar) tiver um filho, ele pode se chamar Stephan Helgasson, traduzindo: Stephan, filho do Helgi. Aí o Stephan cresce e tem um filho e quer homenagear o pai, então seu filho se chamará Helgi Stephanson. E ainda uma filha, que se chamará Helga Stephansdóttir, ou seja, a Helga, filha do Stephan.
E a Helga cresce, decide ser mãe e sua filha se chama Sara. Então o nome dela será Sara Helgudóttir, ou seja, Sara filha da Helga. Na maioria das vezes, o “falso sobrenome” traz o prenome do pai, mas estamos numa sociedade emancipada e conheço muitas pessoas que levam o nome da mãe no fim.
Eu teria muito mais para contar, mas já vou indo, tentando esquecer o perfeccionismo e ousar mais na hora de falar. E toda vez que eu começar a xingar o islandês, vou parar, respirar fundo e dizer a mim mesma: “calma, poderia ser pior: finlandês ou húngaro!”, minhas colegas de blog que o digam.
45 Comments
Erika, que delicia o seu texto…. Esse falso sobrenome tambem acontece no arabe…. Fascinada em cada dia saber mais da Islandia… E pode ser bem pior mesmo: alem de finlandes e hungaro o arabe, que alem de ser dificil de falar, precisa quase de uma habilidade artisitica para escrever kkkk
Obrigada, Renata, também adoro os seus! Eu nem sabia dessa coisa do árabe, estou aprendendo demais aqui com vocês!
Beijo
Minha querida eu entendo perfeitamente você, mas você é muito inteligente, porque enquanto a gente lê o tua materia, ao mesmo tempo se aprende, principalmente para nós que moramos aqui, e eu que estou aqui a quase quatro anos tem uma dificuldade, principalmente porque falo muito português com minha família e eles aprenderam o português. Mas eu fico ouvindo e tentando entender, mas eu fico com vergonha quando as pessoas tentao falar comigo e eu nao consigo me comunicar. Muito boa essa materia que você escreveu parabéns.
Obrigada, Rosangela!
Um dia a gente chega lá. Boa sorte para nós! Beijo
Muito bom teu artigo Erikinha!!! Nooooossa, que complicado… acho que só as crianças vão conseguir aprender tudo que é necessário para falar, escrever e entender bem o islandês. Coitadinha da senhora que conversaste kkkkkkkkkkk Bjsssssssssssss
Obrigada, tia! É bem mais fácil quando a gente é criança…
Beijão
Salerni? Nadie usa esa palabra. Decimos klósett.
Sim, “Salerni” existe e é oficial, há mesmo placas em lugares públicos com ela. Snyrting é a palavra mais usada em placas públicas, agora, na fala realmente usa-se muito klósett.
Obrigada!
Érika, seus textos como sempre uma delicia de ler. Realmente tem algumas línguas que são tão diferentes que demoramos um pouco mais pra encontrar um jeitinho de aprender. Mas você é persistente e super inteligente. Vai conseguir logo logo. Enquanto isso eu brigando com meu cérebro pra aprender hebraico.
Pois é, querida, boa sorte para nós! Super obrigada por compartilhar! Beijos e saudades
Muito bom o artigo, Erika! Parabéns e muito sucesso no aprendizado do idioma Islandes 🙂 Um beijao, Patricia.
Obrigada, Patricia! Beijo grande
Amo seus textos, querida. Obrigada pela aulinha…ahm, estou confusa!!
Obrigada, querida! É difícil mesmo, mas um dia eu chego lá, quem sabe… Super beijo
Peninha de você, Erika Fatimasdóttir ! Bj
Peninha de você, Erika Fatimasdóttir ! Bj
É cabeludo, mesmo, Anely, querida! Beijos
Nossa, tentei falar em voz alta mas deu um nó na cabeça, hehe.
Boa sorte com o aprendizado… um beijo =)
Obrigada, Jéssica! Beijo também.
Obrigada, Jéssica! Beijo para você, também.
Texto muito bem escrito, parabens! Bjo
Obrigada, Vicky, fico feliz! Beijo
Muito bom, Erika. Que língua fascinante. Parabéns!!
Beijos.
Obrigada, Marco! Que bom que gostou, bjs
Eu me identifiquei muito, também sou super perfeccionista com esse lance de idiomas. Eu não falo islandês mas me sentia como você quando cheguei à Dinamarca e não falava nem bom dia em dinamarquês – e isso que quando eu cheguei aqui já dominava outros 5 idiomas além do português… A sensação é mesmo de estar num mundo paralelo! Nunca considerei aprender islandês mesmo conhecendo pessoas daí e sendo super fã da Björk, mas noto várias similaridades com a escrita das línguas escandinavas no idioma. Se quero dizer em dinamarquês que não falo islandês, é “jeg taler ikke islandsk’.
Obrigada pelo ótimo texto! Bjs
Obrigada, Cristiane, fico feliz que você gostou. Ainda não perdi a esperança de aprender mais vocabulário nem de me comunicar direito e sei que vai ser bem lento esse processo, mas já não tenho a ambição de falar perfeitamente ou, pelo menos, da mesma maneira que falo as outras línguas que sei – eu era mais jovem e não tinha filho quando as aprendi, acho que isso faz diferença, o cérebro está mais “fresco”, sei lá.
Admiro quem fala dinamarquês, parabéns! Para mim, soa como um “coreano” das línguas escandinavas, com todo respeito (eu acho o islandês um “grego escandinavo”, tem sons muito parecidos), porque tem essa melodia completamente diferente do sueco e do norueguês. Também entendo um pouco quando vejo escrito (aqui na Islândia o dinamarquês é a primeira língua estrangeira obrigatória nas escolas, antes do inglês), mas muito menos o falado. Dá uma frustração enorme entender mais de um filme sueco com legendas em norueguês do que um islandês (coloco no liquidificador alemão, holandês, o meu islandêsinho furreca), tem horas que dá vontade de desistir. Como dizia um amigo meu italiano, “é muito esforço para pouco resultado”, uma língua de 330 mil pessoas… Bem, um dia eu chego lá. Beijos e obrigada pela força!
Tão comum fingir que entende a conversa e dai a pessoa te para e fala que alguem morreu ou alguma coisa ruim! Hahahaha parabens! Vc conseguiu transmitir muito bem!!
Obrigada, Everton! Beijos
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Muito obrigada por ler e comentar, Felipe!
Sobre os islandeses tentando aprender português, conheço um ou outro bem talentoso, sim. Tenho uma teoria pessoal que diz que, quanto mais difícil a sua língua materna, mais fácil é para você aprender outras línguas, muitas vezes isso se confirma por aqui.
Fico feliz que gostou do texto, no fim deste mês tem mais.
Nunca parei para pensar nisso, mas essa teoria tem fundamento e concordo com você. Por exemplo tenho uma amiga brasileira que foi para a Suíça(parte francesa) e lá ela conheceu um Árabe que havia chegado na Suíça no mesmo período que ela, não sei se è porque o português è considerado mais fácil do que o árabe ou simplesmente dependeu dele e dela, mas ela conseguiu falar fluentemente o francês muito mais rápido do que ele.
Oi, Felipe,
eu não conheço a estrutura gramatical do árabe, mas o francês é bem próximo do português, isso também facilita, embora nem sempre, por exemplo: conheço algumas pessoas que foram morar em países onde se fala espanhol e hoje em dia falam muito mais portunhol do que imaginam, trocando significados ou usando expressões em uma língua achando que estão falando a outra.
Também gente que começa a falar inglês super bem e começa a traduzir palavras só dando uma terminação latina para elas, inventando neologismos que só quem fala as duas línguas entende.
Agora aquela minha teoria tem a ver com estrutura gramatical e fonética da língua. Quanto mais complicada a gramática e mais sons você tiver na sua língua materna, mais fácil fica de aprender uma língua estrangeira. É claro que aprender espanhol sendo falante nativo do português é muito mais tranquilo do que sendo falante do mandarim, por exemplo.
Obrigada, mais uma vez por ler e comentar!
Abraço
Bom muito o texto, muito interessante.Fiquei até como medo de no futuro ir para a Islândia kkk. Mas acredito que sua situação é melhor do que a deles, pois já imaginou um islandês tentando escrever em português kkkk.
Muito bom o seu artigo! Parabéns!
Olá, Lecy!
Fico feliz que tenha gostado. Obrigada!
Já publiquei o comentário, mas vou repetir: gostei muito do seu artigo.
Você trabalha com turismo? Entre em contacto comigo. Já tive clientes do Brasil precisando de guia na Islândia e não tinha nenhum contacto. Meu facebook: Lecy Bleil Tschirner
Moro em Regensburg, Bavária, Alemanha
Sou de Cascavel, PR
Morei em Curitiva, São Paulo, Rio de Janeiro, Erlangen, Guadalajara no México.
Adoro trabalhar com pessoas, viajar, conhecer novas culturas.
Quem sabe não me aventuro aí para os seus lados?
Olá, Lecy!
Muito obrigada por ler e comentar!
Vou entrar em contato com você por e-mail.
Também morei muitos anos na Alemanha, em Berlim, temos algo em comum.
Abraço, aguarde meu e-mail.
Eu fiquei conhecendo a Islândia pela TV, é realmente um país lindíssimo. Uma pessoa que fala o inglês não consegue se comunicar bem com a população?
Adoro seus posts.
Trabalho na área de TI e faço graduação, e busco daqui a uns anos tentar a vida na Islândia, sou apaixonada por esse país.
Gostaria de ir estudando desde já sobre a língua, poderia me indicar sites, canais do youtube, livros e tudo mais para que eu possa iniciar?
Obrigada (:
Provavelmente em consequência do isolamento em que vive, a língua islandesa não evoluiu ao longo do tempo como aconteceu com as suas congéneres nórdicas. Uma situação parecida com as línguas bálticas – o letão e o lituano – apesar de serem consideradas línguas indo-europeias.
O finlandês e o húngaro são, de facto, duas excepções no panorama linguístico europeu. O caso da Hungria é, para mim, verdadeiramente excitante, pelo exotismo que a envolve. Acho absolutamente surpreendente que uma língua única, sem uma ligação mínima que seja a qualquer outra – talvez a tivesse com o finlandês há uns milhares de anos – tenha conseguido subsistir praticamente intacta, sobretudo tendo em atenção a localização geográfica do país. A Hungria está cercada por 7 países, onde se contam latinos, germânicos e eslavos, e consegue manter a sua identidade única.
Esse exotismo fez com que eu me tenha tornado um apaixonado por tudo que diga respeito à Hungria. Vou lá sempre que tenho oportunidade e dedico-me à aprendizagem da sua língua. Uma língua difícil, misteriosa mas também apaixonante. Tenho a perfeita noção de que nunca vou aprender razoavelmente a língua. Sou um autodidacta e sem professor é impossível avançar muito. Mas trata-se de um hobby e não vou desistir.
Sensacional este texto que você escreveu. Realmente, pelo seu relato, e por meu experimento, o islandês é uma língua muito difícil. Mas você é muito inteligente e logo logo conseguirá avançar porque têm duas excelentes professoras, as suas meninas. Relaxe, quando menos esperar estará nas ruas falando firme e alegre com todas as senhorinhas muito simpáticas da Islândia. Abraços.
Aldete, querida,
Muito obrigada! Já melhorei um pouco desde que escrevi o texto, devagar e sempre…
Beijo grande
Ótimo texto!
Esse dias decidi que vou tentar aprender islandês. Moro em Minas Gerais e ainda não encontrei uma escola que tenha aulas de islandês. Acho que vou recorrer aos aplicativos e ver no que da. (Risos)
Sucesso pra você.
Olá! Acabei de voltar da Islândia e me apaixonei por este lugar, o que me despertou a vontade de aprender a língua islandesa. Vc sabe dizer se no Brasil tem algum professor de islandês? Estou no Rio de Janeiro, mas se conhecer algum em outra cidade que dê aula à distância, está valendo!
Desde já, obrigada!
Olá Renata,
A Erika Martins Carneiro parou de colaborar conosco e, infelizmente, não temos outra colunista morando no país.
Obrigada,
Edição BPM