Dando continuidade à sequência de textos sobre propostas de jardins e escolas na Alemanha, (acesso aos textos anteriores no final desta página), escrevo compartilhando um pouco sobre o Jardim de Infância baseado na educação livre e montessoriana, a partir do meu conhecimento teórico sobre o assunto e através da observação da experiência da minha filha mais velha, que entrou no jardim relativamente tarde e frequentou dos 4 anos e meio até os 6 anos o Jardim Livre do vilarejo onde moramos. As impressões são muito positivas.
Um jardim-de-infância livre oferece para crianças entre 3 e 6 anos (alguns jardins aceitam crianças a partir dos 2 anos e meio) uma atmosfera acolhedora e uma diversidade de espaços adequados onde podem, com autonomia, interagir, aprender, ocupar-se, brincar etc. Não existe uma estrutura que configure aulas, ao contrário dos jardins convencionais. Também não existe a imposição de projetos e atividades em grupo. Existem propostas que nascem dos desejos e curiosidades dos próprios pequenos, que podem se transformar em um convite para todos os que queiram participar. A individualidade de cada um é sempre respeitada e quem não quer participar da roda de música, por exemplo, pode fazer outra atividade por si próprio.
O ponto central do jardim livre são os espaços preparados para atender às diferentes necessidades das crianças. É também através da interações que acontecem ali que elas aprendem a tomar iniciativa, fazer escolhas, assumir responsabilidades, confiar em si e relacionar-se com os outros. O papel dos cuidadores / professores é essencial nesta dinâmica, que possibilita muita autonomia e liberdade às crianças.
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Seguem alguns exemplos de espaços disponíveis aos pequenos:
1. Cantinho das bonecas: ali brinca-se de mamãe, papai e filhinho(a) nas mais variadas constelações. Quem já viu crianças brincando de boneca, já viu que famílias patchwork é o que mais se vê: duas mães com um pai, uma mãe com 5 filhos mais a tia, crianças cujos pais morreram etc. A fantasia vai longe.
2. Cantinho da construção: com tocos de madeira ou às vezes Lego, as crianças criam as mais diversas formas, algumas abstratas, outras bem concretas.
3. Cantinho das fantasias: um cesto cheio de fantasias, óculos, chapéus e lenços é suficiente para os mais diversos personagens entrarem em ação.
4. Cantinho das artes: armários abertos na altura das crianças, com tudo organizado ao seu dispor: lápis, giz, tinta, tesoura, régua, papel, jornal, conchas, flores secas, miçangas e muito mais. A regra aqui é clara: usou, guardou e limpou.
5. Sala do movimento: um espaço que proporciona a liberdade de brincadeiras de maior movimento.
6. Cantinho do lanche: cada um sabe onde fica seu prato americano, sua xicarazinha de porcelana e é responsável por lavar sua louça e limpar seu espaço na mesa após ter terminado de comer.
7. Cantinho da leitura: livros dos mais variados possíveis à disposição das crianças. No jardim da minha filha havia uma lareira de barro construída de uma maneira bastante diferente: era uma enorme construção que se estendia para um dos lados e formava uma mini arquibancada, possibilitando que várias crianças pudessem sentar próximas umas das outras enquanto a professora lia um livro. E nisso seus bumbumzinhos eram aquecidos pela lareira.
8. Área externa: jardim com inúmeras possibilidades para brincar, cavar, se esconder, balançar, escorregar, se pendurar…
Muitos dos jardins livres também oferecem um dia na floresta. No nosso caso, as crianças eram acompanhadas pelo professor mais um pai ou mãe durante a manhã cheia de aventuras no meio da natureza.
Por ser sustentado por uma associação de pais, todos os pais e mães devem dedicar algumas horas de atividades mensais de trabalho no jardim. Os tipos de atividades são os mais abrangentes possíveis e vão desde lavar as toalhinhas das crianças semanalmente, tirar o pó dos brinquedos, construir uma cerca no jardim ou até acompanhar e dar suporte às crianças e aos professores nas suas aventuras.
Como é o decorrer da manhã num jardim livre?
Como já mencionei acima, não existem aulas ou projetos dirigidos nos jardins livres. As crianças chegam e podem movimentar-se livremente pelo espaço. Dependendo do jardim, elas são recebidas num Morgenkreis (o círculo da manhã), como forma de acolhimento e boas vindas. Alguns jardins oferecem um tempo determinado para o lanchinho coletivo, outros não. Neste último caso, cabe à criança perceber quando tem fome e pode, a qualquer momento, ir até sua mochila buscar seu lanche para comer no cantinho específico.
No jardim que minha filha frequentou eles ofereciam este tempo de lanche conjunto. O horário de chegada era das 7:30 até às 9:00 e a partir das 9:00 iniciava-se o lanche. Caso a criança não quisesse comer, ela podia ficar em silêncio em qualquer um dos espaços do jardim. E claro, se mais tarde ficasse com fome, podia livremente buscar sua comida.
E o que acontece depois? Inúmeras aventuras! Os grupinhos vão se formando, as brincadeiras começam a nascer e assim, livremente, com acolhimento e presença dos adultos, as crianças passam suas manhãs num espaço preparado para elas. Algumas saem dali já familiarizadas com as letras do alfabeto, outras não. Mas tudo bem, pois este não é o único passo a ser dado antes de entrar na escola. A criança é acompanhada de maneira mais abrangente nas suas capacidade sociais, motoras, cognitivas e emocionais.
O fato do jardim ser livre não significa que ele seja um caos. Pelo contrário, assim como em outros jardins, existem várias regras para o bom convívio, por exemplo: não berrar nem correr dentro do espaço, pegou/guardou etc.
Por mais conhecimento teórico que eu tenha do assunto (fiz mestrado em educação alternativa), assumo que fiquei surpresa em épocas como Natal ou Páscoa onde minha filha voltou pra casa sem ter feito nenhum “projetinho de arte“ com esses temas. Não digo que acho que estas atividades sempre tenham algum sentido para as crianças, mas me lembro de me recordar das minhas próprias experiências do Brasil onde se faz (às vezes exageradamente) lembrancinhas para qualquer ocasião. Como falei, o jardim é livre e estes projetinhos não estão na pauta como uma obrigação. Refletindo sobre isso, fiquei feliz mais uma vez em poder oferecer à minha filha essa oportunidade alternativa ao que estamos acostumados.
Por outro lado, os ritmos do ano, as estações e particularidades de cada fase são lembradas e às vezes festejadas. Mas tudo de uma forma autêntica e sem qualquer cobrança de nenhum dos lados, nem dos pais, nem dos professores perante às crianças.
Qual a base teórica do jardim e da educação livre?
A maioria dos jardins livres orientam-se nos escritos de Maria Montessori, de Emmi Pikler e de Rebeca e Maurício Wild. Todas estas orientações pedagógicas buscam respeitar a criança na sua integralidade e diversidade, oferecendo um ambiente que esteja de acordo com sua fase de desenvolvimento. Percebo que de alguma forma estas pedagogias protegem a criança de toda uma pressa que vive em nossa sociedade. Pelo menos dentro destes espaços as crianças podem ser criança, brincar na lama, brincar de boneca, fantasiar, movimentar-se em espaços adequados para seu desenvolvimento físico, vivenciando uma rotina com poucos estímulos racionais como a alfabetização precoce, já bem implantada em muitos jardins convencionais. É importante mencionar aqui que nem todo jardim livre, Freier Kindergarten como é chamado em alemão, significa que seu conceito pedagógico é livre. O livre refere-se muitas vezes à associação (Träger) que o mantém – ou seja, não é estatal. Para identificar a diferença, é basta informar-se sobre a orientação pedagógica da instituição.
Leia sobre escola livre e democrática na Alemanha
“O nosso jardim-de-infância é um lugar onde:
* as crianças encontram TEMPO para seus processos internos de crescimento,
* onde as crianças têm ESPAÇO para suas atividades escolhidas de maneira livre,
* onde as crianças encontram PESSOAS com as quais se relacionam com interesse e curiosidade,
* onde as crianças vivência a NATUREZA na sua abundância e beleza“ – trecho do conceito pedagógico do jardim livre Pusteblume Heckenbeck (livre tradução).
Acesso aos outros textos: desta série: Jardim da floresta e Jardim-de-infância Waldorf.
1 Comment
Olá Barbará,
Essas escolas de Jardim-de-infância na Alemanha são pagas?
Obrigado
Filipe