Memórias, hábitos e o consumismo consciente na Polônia.
Estes dias, ao passar mais uma vez pelo centro de Varsóvia, comecei a caminhar e divagar sobre a relação que a cidade tinha com o seu passado. Mas não o que havia antes da guerra, mas o que passou a ser construído após, e claro, diretamente ligado à era da República Popular da Polônia (Polska Rzeczpospolita Ludowa, PRL), pois, para quem ainda não sabe, Varsóvia foi praticamente totalmente reconstruída após a II GM, mas seguindo, principalmente, o modelo arquitetônico realista-soviético.
Essas mudanças não se deram apenas na arquitetura mas, sobretudo, no novo estilo de vida. E parte constituinte dessas divagações são as inevitáveis comparações com o Brasil. História, cultura, povo, sociedade e sustos de turista principiante em terras desconhecidas.
Um dos primeiros “sustos” que tive logo que cheguei aqui foi observar que havia muitas coisas “velhas”, “reusadas”, porém conservadas. Fiquei curiosa com certos tipos de lojas, de mercados – dos quais falarei mais adiante – e fiquei fascinada com aquela novidade: ver aquelas senhorinhas com carrinhos de feira fechados e várias quinquilharias baratas, mas não como já havia visto no Brasil pois, apesar de também temos um tipo de comércio popular e mesmo informal, havia algo diferente.
Não sei dizer se foi pela a arquitetura, somada ao clima frio (a primeira vez que vim já era outono europeu) e ao estranhamento à língua, fato é que, para mim, havia uma certa aura, como se não apenas a cidade de Varsóvia, mas a Polônia como um todo, preservasse os ares de outro tempo, dos tempos da PRL.
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É sobre isso que vou falar: sobre esse ar nostálgico e o que ficou disso até os dias de hoje – tanto na arquitetura quanto nos hábitos. Mas sugiro a vocês que tentem perceber que aquele modo de vida do passado condiz com o conceito tão em voga hoje em dia de sustentabilidade, de reaproveitamento, de um consumismo mais consciente.
E porque tive esse olhar? Era primeira vez que visitva um “ex-país comunista”. Bem, pelo menos essa era a generalização criada na cabeça daqueles que vinham do “Ocidente”. Mas brincadeiras à parte, na verdade é que nós, muitas vezes, somos influenciados pela cultura norte-americana (e tudo que se deriva dela), pois estamos, geograficamente, muito mais próximos a eles do que, por exemplo, da Europa ou de qualquer outro continente.
É mais difícil termos traços culturais em comum com outros países, continentes e povos mais distantes; é natural.
Sim, em tempos de internet isso diluiu-se mais, mas estou falando de décadas e décadas de “namoro-noivado” com o massivo consumo do que era produzido culturalmente pelos EUA, do que, por exemplo, do que vinha do misterioso Leste Europeu.
Os ventos da mudança
Porém já estamos – e faz um certo tempo – no século XXI, muita coisa mudou desde as guerras mundiais, desde a morte da “ameaça vermelha”. O muro de Berlim caiu, a União Soviética se dissolveu e a Polônia se rendeu ao “mundo ocidental = capitalista”. Há festas e datas comemorativas para tudo: dia das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, Natal, etc. Tem tudo isso sim, e até mais: basta estarmos a 2-3 meses de uma nova estação e tudo – tudo mesmo – mudam nas vitrines das lojas.
Hoje em dia há uma infinidade de lojas, shoppings e afins. Mas engana-se quem pensa que todos vão loucamente às lojas gastar e comprar coisas novas. Há quem o faça, logicamente, mas muitos – sobretudo os mais velhos – não o fazem, pois nem sempre houve essa variedade de lojas e produtos.
Na época da PRL haviam as loja específicas para que a população pudesse comprar seus produtos. Eram famosas lojas como Wars Sawa Junior, onde hoje funcionam lojas como H&M, Reserved, Sephora, etc., pois eram lojas próprias para venda de roupas masculinas, femininas e infantis naqueles tempos. Assim como também havia lojas específicas para comprar a mobília. Não é por acaso que quase todas as casas tinham o mesmo aspecto. Para saber mais sobre aquela época, vale a visita ao Museu PRL.
Para se ter uma ideia, até mesmo o dia das crianças receberem algo no Natal tinha uma data diferente naquela época. As crianças recebiam presentes no dia 6 de dezembro (dia de São Nicolau, o Papai Noel do leste) em vez do dia 25 de dezembro com seu forte apelo do mundo “capitalista ocidental”.
O que a memória guarda dos tempos da PRL
Bem, eu não vivi este tempo, o que minha memória “guarda” vem do que li e dos relatos de pessoas que viveram naquela época, como o do meu marido, que era uma criança a completar 8 anos quando o sistema socialista entrou em colapso e por fim acabou, em agosto de 1989.
Ele me contou que, na década de 90 – durante a transição – quando foi inaugurado o primeiro McDonald’s na Polônia, havia filas quilométricas, era uma sensação, como se algo do mundo capitalista estive transpassando os véus da cortina de ferro.
Pouco mais de uma década, claro que ainda há McDonalds e outras redes de fast food, mas aqui elas não são tão “bombadas” como no Brasil, por exemplo. Há muitas outras opções de outras redes menos conhecidas e outros estilos de restaurantes e lanchonetes, como os Bary Mleczny.
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Bar Mleczny (em tradução livre Bar de Leite, mas na verdade não são bares, pois não se vende bebida alcóolica) são restaurantes populares com um conceito do qual não estamos habituados no Brasil, oriundos dos tempos socialistas.
Podemos comparar a um bandejão brasileiro, mas na verdade não há o conceito self-service: aqui o atendente serve a pessoa baseado na opção do dia (mostrado numa tabela, não há cardápios), que consiste, geralmente, em uma sopa (de praxe para os poloneses, como se fosse uma entrada), uma porção de carne mais um acompanhamento (batatas e saladinhas, a famosa surówka) e claro, o maravilhoso kompot, que aqui não é a nossa compota, mas um refresco de frutas vermelhas da estação.
Os preços são bem acessíveis, com menos de 20 PLN (equivalente ao nosso Real) pode-se comer muito e bem, pois nesses restaurantes, podemos sentir o verdadeiro sabor da comida polonesa de vó (ou melhor, babcia). Deixo aqui um link com várias opções de bares de leite em Varsóvia, inclusive do repaginado Bar Gdański, um dos meus favoritos.
Outra institução dos tempos socialistas que perdurou, mas hoje em dia é apenas para turista ver, são as pijalny, aqui sim, os bares de verdade, também com origem na era RPL. Após o trabalho era comum que as pessoas (geralmente os homens) fossem lá para tomar sua bebida. Havia uma espécie de preço tabelado para todos os produtos, como quase tudo na época. Você pode encontrar uma rede bem famosinha – e estilizada – a Pijalnia Wódki i Piwa, para verificar como era o clima da época. Em Varsóvia é bem fácil de achar, pois fica numa das principais ruas da cidade.
Compras com o conceito contemporâneo de sustentabilidade
Além disso, nos anos 90, era muito popular fazer um tipo de comércio ao ar livre, como nossas feiras populares, onde era possível encontrar de tudo e comprar verdadeiras relíquias a preços muito baratos. Ouvi relatos de gente que viveu nessa época que podiam comprar verdadeiros artigos de colecionador a, literalmente, preço de banana. Meu marido mesmo tem um binóculo de última geração (pra época) made in U.S.S.R.
Um dos mercados mais polpulares – e o maior a céu aberto do “Leste Europeu” era o Jamark Europa, que acontecia na parte superior (e adjacências) do antigo Estádio da Década (em polonês Stadion Dziesięciolecia), que foi demolido em 2008 para dar lugar ao novo Estádio Nacional (Stadion Narodowy), um dos palcos da Euro Copa 2012.
E essa renovação não foi por acaso. Por ali havia uma efervescência multicultural de pessoas que vinham das mais variadas partes da Polônia e dos países vizinhos, o que gerava empregos informais e era um ponto de encontro, como se os excluídos do outro lado do rio Vístula, que não eram “aceitos” no outro lado do rio, pudessem ali, serem livres.
Aliás a fama de “perigoso” do bairro de Praga perdurou por muito tempo, fazendo com que muita gente que morava do outro lado do rio não cruzasse a ponte por muito tempo. Bem, lenda ou não, hoje podemos sentir uma aura peculiar em Praga (até porque durante a II GM essa parte praticamente não foi destruída, mantendo o casario original). Porém, a cada ano, o bairro tem se renovado com eventos culturais mais alternativos, museus (como o recém-inaugurado Museu da Vodca), fazendo de Praga (e Saska Kępa) o novo ponto dos jovens hipsters e artistas.
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Mas esse tipo de comércio ainda pode ser visto hoje em dia em Varsóvia. Os chamados targy/targowisków são como nossas barraquinhas de comércio informal, e ainda me faz lembrar o Camelódromo do Recife, guardadas suas devidas proporções. Digo mais no sentido de ter seus espaços organizados e divididos.
Quando morei no bairro de Ochota frequentei muito o Targowiskwo Banacha, onde podia encontrar de tudo (encontrei enfeites para minha árvore de Natal na véspera do Natal) a preços muito baixos.
Aliás foi também nesse bairro (mas há por toda Varsóvia) que vi pela primeira vez as famosas lojas de roupas de segunda mão, mas não como nossos brechós, pois aqui vende-se e compra-se por quilo (odzież na wagę), cujos preços variam de acordo com o recebimento da coleção. É certo que é cada vez menos comum clientes individuais venderem roupas, pois geralmente essas lojas já possuem seus fornecedores, por exemplo, de coleções passadas. Uma das maiores é a Gemma.
Também é possível revisitar esse passado conhecendo alguns mercados de pulgas pela cidade, o mais famoso o Bazar na Kole, que ocorre nos finais de semana no bairro de Wola (Koło) pelas manhãs. Vale muito conhecer as peças antigas, tentar comprar algo negociando o preço e assim, voltar um pouco no tempo.
Bons tempos, mas modernos
E como não podemos viver apenas de passado, os antigos Hala (mercados) estão se renovando com o tempo. Podemos vê-los por toda cidade como o famoso Hala Mirowska (1902) e outros nem tanto, mas podemos ver espaços inteiramente renovados após anos fechados, como o Hala Koszyki (1908) e o Hala Gwardii (contrução contígua ao Hala Mirowska), hoje locais turísticos e para os moradores disfrutarem da gastronomia de outros países, música e eventualmente, jogos da Copa, como esta última que tivemos.
Espero que vocês se sintam inspirados a conhecer essa Varsóvia que eu conheci.
Até a próxima!