Em maio de 2019 completarei três anos morando fora do Brasil. É difícil explicar o que significa enxergar a minha referência de lar como algo tão distante da minha realidade hoje. Saber que tudo que se construiu em termos de relacionamentos pessoais com a família e amigos ficará restrito às viagens de férias ao Brasil ou de visitas de amigos/familiares à Europa.
Fato é que optamos sair do Brasil por não enxergarmos perspectivas de melhora no curto e médio prazo na questão da segurança pública e continuar vivendo como reféns constantes não era mais uma opção para nós. Eu sempre andei em constante alerta, apesar de nunca ter sofrido nenhuma agressão física mais grave. Porém, apesar de ilegal no Brasil, meu spray de pimenta era item essencial da bolsa de mão, cheguei a fazer cursos curtos para mulheres de krav magá (sistema de combate e defesa pessoal corpo a corpo desenvolvido em Israel), mas ainda assim sabia que nada disso adiantaria em uma situação de abordagem armada ou mesmo frente à diferença de força física para um homem.
Viver isolada por grades, com receio de caminhar 15min até o trabalho não era mais uma opção para mim, foi então que começamos a cogitar deixar o país. Em 2016, então, tive a oportunidade de “testar” a vida fora novamente, pois já havia morado um ano na Alemanha em 2008. Por diversas outras razões que pesaram muito em nossa decisão (sempre acredito que o universo acaba trabalhando para que as coisas aconteçam) acabamos batendo o martelo e mudamos em definitivo. Após quase cinco diferentes mudanças – do Brasil para Munique, três diferentes mudanças dentro de Munique, de Munique para Colônia e, finalmente, para Luxemburgo -, uma mudança em particular nunca aconteceu: o sentimento de medo, aquele estar alerta o tempo todo.
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Se estou sozinha no trem e entrar um homem, automaticamente já penso nas possibilidades de fuga, de defesa – em caso de ele tentar algo contra mim – e o mesmo acontece quando estou na rua. Se vejo homens andando na rua em grupo, acabo atravessando para ficar do lado oposto. Na maioria das vezes, obviamente, não passa de fobia da minha parte. Contudo, recentemente, tive uma situação bastante desagradável com um homem no trem que ficava me encarando e, ao trocar de lugar, tive de explicar para ele por que resolvi mudar de lugar, pois ele estava apenas “olhando para mim”. São fatos realmente isolados e a forma de abordagem não é nem de perto comparada às agressões diárias verbais e abordagens que eu sofria no Brasil.
Eu sempre pensava, porém, que esse sentimento era exclusividade minha, por ser paranóica ou qualquer coisa do tipo. No entanto, conversando com outras amigas brasileiras que residem aqui, ouvi relatos de situações parecidas, deste sentimento constante de alerta. Outra amiga que está conosco por um período também comentou que está permanentemente “em alerta”. Curioso, pois Luxemburgo é considerado um dos países mais seguros do mundo. Em conversa com um coach que frequentei em Colônia, na Alemanha, comentei que o motivo principal que me levou a deixar o Brasil foi a violência. Ao que ele me confessou, intrigado, que havia ido ao Chile e nunca havia se sentido tão seguro na vida. O mesmo com turistas alemães que conheci no Rio; que me comentaram se sentir extremamente seguros na Cidade, em pleno Rio de Janeiro.
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O medo está de certa forma tão arraigado em nossa mente que não importa onde eu more (Munique ou Luxemburgo ambas possuem índices realmente muito baixos de violência), ele aparentemente sempre estará lá como um fantasma que me assombra. Por outro lado, pessoas que foram criadas em um ambiente de segurança, não conseguem se sentir em perigo, ainda que em uma das cidades mais violentas do mundo.
Ouço os casos de assassinatos recentes no Brasil (os poucos que fico ainda sabendo) e sempre me questiono em que momento nossa sociedade adoeceu tanto, ao ponto de uma vida não valer absolutamente mais nada e, pior, de nos resignarmos tanto que achamos normal viver dessa forma. Assim como eu, milhares de pessoas têm deixado o Brasil anualmente, fugindo de um país que não tem mais capacidade de prover o mínimo para os seus cidadãos. Mais de 60 mil pessoas são assassinadas no Brasil anualmente, de acordo com os dados oficiais, ou seja, os números reais são provavelmente maiores. Esses índices superam os índices de qualquer país em guerra. Ou seja, vivemos em guerra, e infelizmente para mim essa não era mais uma realidade aceitável.
Contudo, a escolha de morar fora não é fácil nem nunca foi, ao menos para mim. A felicidade de acompanhar os aniversários dos amigos, as separações, os casamentos, os nascimentos, nada disso mais faz parte da nossa rotina. É difícil ouvir um amigo chorando no telefone e saber que não se pode estar lá para abraçá-lo pessoalmente. Ou ainda, saber que teremos de sofrer uma cirurgia e não teremos o apoio da família que sempre tivemos no Brasil. A liberdade de andar na rua de certa forma em segurança pela ausência de estar ao lado de quem se ama.
Deixamos um país que tinha tudo para ser perfeito, deixamos um pedaço de nós para trás, em busca de ao menos não viver com medo. Fico feliz em ouvir a cada vez que encontro alguém que esteve no Brasil quão cordiais somos, o quão amigáveis e prestativos somos. Parece que fico mais perto de casa. Morar fora é, acima de tudo, tentar entender onde está a minha casa, é uma busca constante de identidade, de reidentificação. Em nossa identidade, guardamos a alegria, a cordialidade, a amistosidade, mas também o medo. Espero algum dia poder andar e ser livre nas ruas, como qualquer europeu, com um sentimento de segurança e de total liberdade.
Espero algum dia poder andar livre nas ruas do Brasil de novo, sem medo.
Abraços e até o próximo texto.