O Impacto de Katrina e a chegada dos brasileiros em Nova Orleans.
“Naquela tarde de princípios de novembro, o sudoeste que soprava sob os céus de Santa Fé punha inquietos os cata-ventos, as pandorgas, as nuvens e as gentes: fazia bater portas e janelas: arrebatava de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais: erguia as saias das mulheres, desmanchava-lhes os cabelos: arremessava no ar o cisco e a poeira das ruas, dando à atmosfera uma certa aspereza e um agourento arrepio de fim de mundo.” — O Retrato
O Minuano, vento penoso e cortante de ar polar, é um personagem recorrente no inverno gaúcho, às vezes na primavera, como nas obras de Érico Veríssimo. Na minha infância, eu senti a sua força não foi na pele, mas nos ossos.
No mesmo período do ano, porém verão nos Estados Unidos, ventos ainda mais traiçoeiros sopram aqui. A temporada de furacões inicia no dia 2 de junho e se estende até o final de novembro. Cada tempestade é batizada com um nome diferente em ordem alfabética. Em 2005, um ano agitadíssimo no Oceano Atlântico, a 13ª tempestade se chamava Katrina.
Eu acabara de me mudar para Nova Orleans. Meu marido trabalhava embarcado. Dormia 15 dias na plataforma, 15 dias em casa. Descobri que é difícil fazer amizades na universidade quando você é casada aos 21 anos. E ainda mais difícil fora dela sem trabalho, sem filhos e sem conterrâneos. Em uma era pré-rede social e smartphones, me vi sozinha. Para curar a solidão viajei para o Brasil e matei a saudade da família.
Depois da visita aos meus pais, eu engatei um mês de estudos em Madri e fiz um mochilão de duas semanas pela Europa. No total, fiquei quase três meses longe de casa. Quando retornei a Nova Orleans estava exausta, mas confiante. Eu tinha feito amigos na Espanha, e quando as aulas iniciaram quatro dias após o meu retorno, escolhi ignorar o burburinho no campus sobre uma possível tempestade vindo em nossa direção.
Tudo ia de vento em popa quando o meu entusiasmo foi interrompido por uma ligação. Meu marido me avisou por telefone que ele estava vindo para casa e pediu que eu começasse a fazer as malas, as mesmas que eu tinha acabado de desfazer. O Furacão Katrina, que já tinha passado por Miami, ganhou potência ao se alimentar das altas temperaturas das águas do Golfo do México e se transformou em uma monstruosa tempestade. O prefeito a chamou de “A Tempestade do Século.”
Nosso protocolo é sempre o seguinte: enquanto meu marido enfrenta as filas do posto de gasolina e mercado, eu encho as banheiras com água, limpo a geladeira, coloco as minhas roupas favoritas e meu ursinho de pelúcia na mala e pego o kit furacão. Esse, muito importante, contém nosso álbum de casamento, documentos e minha papelada de imigração.
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A calma antes da tempestade
Nós partimos de Nova Orleans antes de o prefeito decretar evacuação mandatória. Já havíamos passado por outras três, não queríamos repetir o erro de sair de última hora e ficarmos presos no trânsito. Chegamos à pequena cidade na divisa com o Mississippi, onde a família do colega do meu marido nos esperava, sem transtornos. Era uma belíssima casa no meio do mato. Passamos a tarde de dia ensolarado na piscina.
À tardezinha o vento começou a soprar, à noite se intensificou e o seu barulho se misturou com o canto das cigarras. De madrugada podíamos ouvir o som das árvores caírem. O ventilador parou de girar, sinal de que as fortes rajadas tinham alcançado os postes de energia. Meu marido, que ama tempestades, passou parte da noite assistindo o show de raios que iluminavam o céu e a chuva torrencial que chegou cedinho da manhã.
As sequelas
Grande parte de quem vive no interior do Mississippi tem um gerador poderoso, uma serra elétrica e armas de fogo em casa, o que para mim era quase mais assustador do que a tempestade, mas que vieram a calhar diante das circunstâncias.
Colocamos o gerador para funcionar por algumas horas para assistir ao noticiário. As bombas não funcionaram e um dos diques, que não foram feitos para sustentar as forças de um furacão daquela categoria, desabou. Eu me desesperei com as imagens da cidade debaixo d’água. Fiquei ansiosa para voltar para casa, chegar a algum lugar com sinal de telefone e ligar para os meus pais. Eles estavam no Brasil recebendo ligações de familiares e amigos preocupados.
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Saímos do Mississipi dois dias depois e passamos a viver feito nômades. Ficamos uma semana com meu irmão no Alabama, outra em um hotel em Lafayette, e quase um mês na casa de uma família que nos abrigou na sua sala de jantar até encontrarmos um apartamento em Baton Rouge, onde eu poderia terminar o semestre da faculdade.
Depois do estrago que fez na cidade, Katrina teve a audácia de trilhar o meio oeste americano, voltar a circular pelo Atlântico e retornar a Nova Orleans em forma de chuvisco. Se não bastasse a tragédia provocada pela natureza, a catástrofe ainda maior foi consequência do descaso do homem. As autoridades deixaram o povo completamente desamparado. O governo só acionou a assistência duas semanas depois.
Teve irmão que matou irmã por um pacote de gelo. Bairros inteiros viraram puro mofo. Vimos carros pendurados em árvores e barcos transitando pelas ruas alagadas. O estádio Superdome, que abrigava a população que não conseguiu escapar a tempo, virou o inferno na terra. Corpos flutuavam na água estagnada num cenário pós-apocalíptico. Mais de 1.800 pessoas morreram.
Muitos que foram resgatados por ônibus com destino a Houston e Atlanta não voltaram. A população diminuiu pela metade e até hoje permanece 80% do tamanho pré-Katrina.
O renascimento
Enquanto a população buscava forças em meio ao caos para dar início à reconstrução, os caçadores de furacões chegaram à cidade. Imigrantes latinos, entre eles brasileiros de Boston, Atlanta e Florida, fizeram parte dessa resposta imediata à força de trabalho.
As mulheres brasileiras começaram a chegar um pouco mais tarde para cozinhar pratos brasileiros que vendiam em canteiros de obras ou para trabalhar em hotéis e restaurantes recém-inaugurados. Devido à crise e à enorme demanda de trabalhadores, o status legal não era um problema.
Quando a cidade se recuperou gradualmente, os brasileiros ocuparam seus próprios espaços na cidade. À medida que o enclave brasileiro crescia, alguns deixavam a construção para assumir empregos ou abrir pequenos negócios que atendiam às necessidades de seus compatriotas. Em seu pico, a população brasileira que pré-Katrina era quase inexistente, chegou a 9.000. Acredita-se que aproximadamente 5.000 permanecem.
Nos juntamos aos brasileiros e ao povo perseverante de Nova Orleans dispostos a reerguê-la. Se antes de Katrina eu me sentia deslocada, o sentimento desapareceu quando abri a porta do mercadinho brasileiro que se instalou perto de casa. Para mim, nada representa um lar melhor que o aroma de pão de queijo saindo do forno.