Por que eu me sinto em casa morando na Sibéria?
Mesmo depois de alguns anos morando e viajando por países de diversas culturas e costumes, ao saber que me mudaria para a cidade de Omsk, na Rússia, confesso que não imaginei me sentir em casa, na Sibéria.
Não só pela dificuldade da língua (a língua russa tem letras e pronúncias quase impossíveis de repetir!), mas também pelo clima extremo, com temperaturas mínimas de inverno de -45 ºC, ir morar numa cidade conhecida somente no jogo “War”, em plena Sibéria, era algo muito desafiante.
Depois de algum tempo fora do Brasil, é muito bom quando chegamos num lugar totalmente desconhecido e encontramos coisas que nos são familiares, como descobrir um restaurante que faça aquele arroz e feijão caseiros. Dá aquela sensação de estar em casa, de relaxamento.
Para minha surpresa, passeando por Omsk, descobri no supermercado um balcão cheio de salgados que pareciam pastéis fritos e esfihas. Isso mesmo! Meus olhos brilharam de tanta emoção. Eu amo pastel. Na hora, pedi dois de cada sabor através de mímicas e sem entender quais eram os recheios.
Pesquisando, descobri que o pastel, chamado aqui de Chebureki (Чебуре́к), é um prato nacional do povo tártaro da Crimeia, muito difundido na Rússia e nos países da antiga União Soviética. Dizem os russos que o melhor chebureki é o feito na Crimeia.
A massa é uma delícia, igualzinha ao nosso pastel de feira, além de super crocante, e como estamos na Rússia, claro que a cachaça é substituída pela vodka. O recheio geralmente é a base de carne de cordeiro (outra paixão russa), com vários temperos e ervas aromáticas, típicos da culinária russa, como o endro.
Já o pãozinho que parecia uma esfiha se chama Echpochmak (Эчпочма́к), prato típico russo originário do povo basquir (bashkir), um grupo étnico de origem turca, cujo nome significa “triângulo”. Seu sabor e textura são muito parecidos com as tradicionais esfihas brasileiras, porém a versão russa leva ovo na massa.
Tradicionalmente, os russos colocam batata junto com o recheio, que pode ser de carne de cordeiro e até de ganso. Outra curiosidade é que na montagem do echpochmak o recheio é colocado cru.
Depois de tanta felicidade em achar essas iguarias brasileiras e me sentir em casa, na Sibéria, para fechar com chave de ouro, o meu passeio, o que encontrei? Doce de leite (Дульсе де Лече) ….. geladinho e pronto para o consumo! Aqui na Rússia, o doce de leite é vendido em latas como as de leite condensado e exposto em geladeiras, junto com os iogurtes e leites frescos. É bastante utilizado em receitas de doces e bolos, outro carro-chefe russo.
Após essas incríveis descobertas, faltava experimentar os pratos de origem russa tão queridinhos de muitos brasileiros, como o estrogonofe de carne e a salada russa.
Comecei uma peregrinação pelos restaurantes de Omsk e confesso que tive um pouco de dificuldade para encontrar um que tivesse o estrogonofe no cardápio. Finalmente encontrei, mas num dos restaurantes onde experimentei o prato, ele nem estava escrito no cardápio. Todos os estrogonofes que comi eram muito saborosos e bem parecidos com a receita que fazemos no Brasil.
E por falar em receita, o estrogonofe (em russo строганов – “stroganov”), como sabemos, é um prato típico russo, criado no final do século XIX em homenagem ao Conde Alexander Grigorievich Stroganov, de onde foi tirado o nome. Diz a lenda que o seu criador foi um chefe francês que combinou técnicas culinárias francesas de cozimento de carnes com as da culinária russa, originando esse prato tão saboroso.
Nos restaurantes russos o estrogonofe é servido na sua versão clássica, com carne de boi (em russo Бефстро́ганов – “bef stroganov”). Inclusive, é muito fácil encontrar nos açougues e mercados a carne para fazer o estrogonofe já cortada no tamanho certo. O que facilita bastante a vida.
Sobre a receita, a versão original é diferente daquela que conhecemos hoje, preparada com catchup e cogumelo. Ela utiliza apenas farinha de trigo e creme de leite azedo (Сметана, em russo – “smetana”), além do filet mignon e ervas, acompanhado com purê de batatas e pepinos em conserva).
Já a “caça” à salada russa foi algo bem mais simples. Isso porque os russos a servem como entrada e não como acompanhamento de pratos principais, como estamos acostumados no Brasil. E como eles comem saladas até no inverno, a salada russa é facilmente encontrada em restaurantes e até em supermercados e padarias, já pronta para o consumo.
Aqui ela é chamada de salada Olivier (салат Oливье), inventada em meados de 1860 por outro chefe de cozinha francês que trabalhava em Moscou, Lucien Olivier. É um prato muito difundido na gastronomia russa e nos países da ex-União Soviética, tanto que se tornou um símbolo da gastronomia do Ano Novo russo.
A receita original do chef Olivier é um mistério não desvendado até hoje, mas sabe-se que junto com as batatas e a maionese ele utilizava carnes de boi (incluindo a língua), de galo, molho de soja Kabul e até caviar. Com o passar dos anos, os russos modificaram a receita, substituindo muitos ingredientes, como os diferentes tipos de carnes, por linguiça defumada, muito parecida com a receita feita no Brasil para acompanhar o churrasco.
Ah… o churrasco. Qual brasileiro que mora no exterior não sente falta de um bom churrasquinho com os amigos e a família? Pois é, aqui descobri que os russos fazem uma versão do nosso espetinho, que se chama Chachlik (Шашлык), um prato típico da cultura eslava e do Cáucaso (entre os mares Negro e Cáspio), principalmente nas regiões da Rússia e do Azerbaijão.
O chachlik é considerado um kebab, sendo preparado com carne em pedaços pequenos (geralmente de cordeiro) intercalado com vegetais, como cebola, tomate e pimentão, e assado no espetinho em grelhas semelhantes às churrasqueiras brasileiras. É vendido em todos os restaurantes de comidas russas, sendo um prato tão importante que na Armênia, por exemplo, todos os anos é realizado o Festival do Chachlik.
Percebi que a culinária russa é o resultado maravilhoso do convívio de muitos povos de diferentes origens e culturas, assim como o Brasil. Um país com uma gastronomia tão rica de sabores que realmente me surpreendeu e que ainda tenho muito a descobrir. Mas de uma coisa tenho certeza, de fome, na Rússia, eu não morro!
8 Comments
Não fazia idéia que haviam coisas tão parecidas com a comida do Brasil! A salada russa é famosa aqui na Espanha também, a nossa maionese do Brasil. Mas o Stronogoff eu achava que fosse totalmente diferente do Brasil! e nunca imaginei pastel, hehehehehe. Muito interessante.
Pois é Camila. Pra mim foi uma supresa (e felicidade) enorme quando vi o pastel. Eu amo pastel! A Rússia está sendo pra mim uma maravilhosa suspresa. Obrigada pelo seu comentário!
Excelentes considerações! Parabéns pelo curioso texto. O stroganof russo servido em Moscou achei bem diferente do nosso. Há um caldo de carne e smetana, e não sentimos sabor de molho de tomate. Curioso ser servido com purê e pepino em conserva! Aliás, em São Petersburgo e Moscou os russos usam muito a smetana, até no café da manhã. É uma das coisas que tenho saudades de lá. A Rússia, tal qual o Brasil, por conta da extensão territorial e influência de diversos povos, deve ter uma vasta culinária. Gostamos muito da comida georgiana, provincia da extinta URSS, como o khachapyri. Há na Sibéria também?
Olá Talita.
Sim. A comida georgiana vende em todos os lugares. Aqui em Omsk, por exemplo, o Khachapuri vende em quase todos os restaurantes, que aliás oferecem uma mistura de pratos das regiões da ex-URSS. Inclusive, tem um georgiano maravilhoso pertinho da minha casa. A comida servida é somente georgiana e o local tem decoração típica. É até engraçado de ver.
Também adoro o smetana. Uso muito em casa, não só com caviar, mas também em pratos quentes, além da sopa, como fazem os russos.
Obrigada pelos seus comentários e fico fliz que tenha gostado. Assim você lembra um pouco da Rússia!
Abraços.
Adorei o artigo, querida Vanessa!!!!
Parabéns pelo texto, rico em detalhes e muito esclarecedor!
Obrigada por compartilhar particularidades gastronômicas desse lindo país, nos brindando com novidades saborosas da culinária russa, além de desvendar a similaridade com algumas iguarias brasileiras
Ficamos aguardando os próximos artigos e as novidades que eles certamente devem nos trazer.
Sucesso!!!!
Obrigada! Um grande beijo!!
Adorei saber que outra brasileira conhece a vida na Sibéria. Morei na ilha de sakhalinsk, na cidade de Poronaysk em 2004 e 2005. Meu ex era sempre transferido por conta do seu trabalho (construção de dutos de petroleo, armazenamento de carvão, etc). Haviam muitos italianos na equipe dele (ele era o unico francês na época).
Saudades de ver as ondas do mar congeladas (-48) e de comer pata de carangueijo. Compravamos 1 pata apenas porque os carangueijos siberianos são gigantescos.
Forte abraço e aproveite bastante.
Oi Carla.
Realmente é difícil achar brasileiros na Sibéria. Aqui em Omsk, por incrível que pareça, tinha um padre católico de SP. Eu não era a única!
Então você também tinha uma vida cigana? Eu aproveito tudo que posso em cada lugar que vou!!A vida na Sibéria tem seus encantos sim, apesar do frio rigoroso.
Abraços e obrigada pelos seus comentários.