Porque me tornei feminista em Sydney.
Uma amiga de Londres uma vez me perguntou se eu me considerava feminista. Eu respondi que não gostava de me categorizar em nada. Ela nunca me falou porque me perguntou isso e eu também nunca perguntei. Algumas perguntas e respostas tomam um tempo para fazerem sentido.
Hoje eu achei a minha resposta para o motivo pelo qual nunca me fiz essa pergunta, e porque não pude dar uma resposta à minha amiga. Então aqui vai, antes tarde do que nunca! Amiga Thais, de Londres, a Mendes mesmo, agora estou pronta para te responder. Como poderia eu não ser feminista? Aliás, como alguma mulher no mundo não o seria? Hoje eu sei que esse termo pode e tem muitas interpretações, mas algo me faz querer gritar aqui mesmo nesse avião onde estou agora indo para lá mesmo, onde tudo começou: Londres. Quero gritar “como nós, mulheres, que nunca soubemos de fato o que é igualdade, ainda sofremos nos tempos de hoje (modernos) com tantas diferenças? ”
O tempo que o tempo precisa nunca falha. E hoje, há três anos e meio cuidando dos meus dois filhos, é a primeira vez que passo mais de poucas horas totalmente sozinha e longe deles. E esse tempo está sendo muito mais do que precioso: foi suficiente para chorar ao ver o filme “Sufragettes”, possível durante o trajeto Sydney – Cingapura, uma viagem longa de 8 horas. Não me importei por nem um minuto de estar com a cara inchada. Já perdi a vergonha depois dos tantos fiascos dos meus filhos nas viagens longas. Cara inchada agora para mim não é nada. E como o tempo geralmente é o nosso melhor amigo, cá estou eu, refletindo sobre o filme e chorando. Eu chorei sim, do começo ao fim. Chorei por nunca ter me dado conta do quanto a história ainda permanece, e de como nunca percebi que vivi e vivo um machismo inconsciente, surdo e burro.
As mulheres mais fortes e determinadas que conheço, incluindo eu e a amiga Mendes, a minha irmã e a minha mãe, lutaram e lutam contra o machismo desde sempre e a metade delas nunca nem se deu conta. Eu faço parte dessa metade. Me pergunto como uma adolescente de 15 anos, crescendo nos anos 90, usava, em pleno verão, três calças (uma em cima da outra) para tentar disfarçar a magreza completamente saudável, pois ironicamente naquela época era “feio” ser magra. Foram com pressões como esta que cresci vivendo, sem me questionar se estavam certas.
“Uma conquista para as mulheres não deveria ser a soberania dentro do reino doméstico, mas sim ver seu reino cuidando de si mesmo, se auto-gerenciando, enquanto ela se ocupa de desbravar o mundo e tudo aquilo que lhe foi negado ao longo da história.” Thais Mendes
A minha verdade é que meu feminismo nasceu cru, orgânico e lindo. Ele nasceu do meu próprio exemplo e foi voando para longe da Austrália! Hoje eu consigo perceber o quanto ainda sofremos com o machismo incoerente e inconsciente, como o do meu marido, por exemplo. Eu estou viajando para compartilhar meu trabalho do outro lado do mundo e por mais que eu tenha organizado tudo, absolutamente tudo, para meus dois filhos (2 e 4 anos) ficarem bem cuidados, escutei até o último minuto do meu embarque que como mãe eu não deveria estar “largando” meus filhos por alguns dias. Meu marido, que considero cabeça “aberta” e bem situado na história social/política/econômica do mundo, caiu nas garras do machismo histórico e, pelo jeito, genético. E segundo “isso”, eu não tenho o direito de viajar a trabalho, mesmo que eu tenha feito e organizado tudo para minhas crianças serem bem cuidadas. Mas eu não posso! Só ele pode viajar a trabalho. Eu, não. Por quê?
Quem acompanha meus textos aqui no BPM sabe que nos mudamos da Inglaterra depois de longos e intensos 14 anos. Começamos nossa vida na Austrália do zero, profissionalmente falando. Estávamos os dois nos adaptando e indo atrás de oportunidades em nossas carreiras, nosso “ganha pão”. Meu marido, sob a cegueira do machismo genético, sempre achou que ele era a prioridade. Que ele deveria passar os dias inteiros sentado em cafés organizando entrevistas e procurando trabalho enquanto eu cuidava de tudo em casa. Eu, por ter cuidado todo esse tempo dos nossos bebês, achei que sim, esse era o meu papel. Até que percebi que não, pois a oportunidade de começar do zero, manter a família e dar suporte emocional e financeiro aos nossos filhos eram tarefas que deveriam ser mais bem distribuídas, se não completamente divididas – já que estávamos os dois no mesmo momento (procurando emprego).
Por fim, fui bem teimosa com meus instintos, lutei pelo meu lugar fora de casa, não só como mãe, mas como a Letícia, tentando fazer minha parte no mundo como profissional, não como “dona de casa” – meu Deus, como desgosto desse termo. Eu consegui, debaixo de muito argumento, mas sinto que não era para ser assim, pois eu quero e preciso de tempo longe deles. Eu quero e preciso, também, ser a provedora da família. E é por isso que hoje estou aqui nesse longo voo, rumo a outro continente, em busca dos meus sonhos. Meus filhos estão lá na Austrália, bem cuidados, sem mim. Isso não me faz uma mãe em falta. Estou cansada de escutar do meu esposo “como é bom ter a casa arrumada”. Eu quero a casa desarrumada e quero estar trabalhando! Afinal, o mundo se torna um lugar melhor se estou exercendo a minha profissão e contribuindo para a sociedade. O quanto a minha casa está limpa não ajuda em nada o mundo, não acham?
Chorei o filme inteiro, sentindo a dor daquela época e da minha própria dor hoje. Chorei ao ver que as mulheres ainda ganham menos do que os homens e que o direito de votar, por exemplo, é algo muito novo, conquistado com muita luta nos últimos 100 anos. Li na revista de visão feminista “Womankind” que, segundo o Fórum da Economia Mundial, para cada 1 dólar ganho por um homem a mulher ganha $0,60 pelo mesmo trabalho feito, e que levará por volta de 100 anos para a igualdade desse número acontecer. Peraí, vou ali chorar mais um pouquinho e já volto. É inacreditável.
Você não se acha feminista? Pois então, em quase 34 anos eu também nunca achei que fosse. Até eu entender que se você nasceu com uma vagina, desculpa, mas você é tão feminista quanto eu e todo o resto das mulheres do mundo. Você talvez não saiba ainda, e eu entendo o porquê. Tudo bem, o tempo é assim mesmo, ele respeita o momento de cada um. No mínimo você pode conferir o filme “Sufragette”. E se sentir vontade de chorar também, como eu tive, que esse choro te lave a alma. O seu coração feminista está gritando, escute-o!
5 Comments
Adorei Lele, muito bom o seu texto. Leitura delisiosa e necessária. Pera ai que vou ali chorar um pouquinho e já volto. O osso é duro amiga e buraco muitoooo mais em baixo.
Parabéns Letícia!!! Excelente texto!!!
Aos meus 22 anos ainda me questiono se sou feminista ou não, no fundo reconheço que sou e como você disse “se você nasceu com uma vagina, desculpa, mas você é tão feminista quanto eu e todo o resto das mulheres do mundo”, apesar de discordar em alguns temas abordados em sites feministas. Mas diria que estou fase de adaptação, estou revendo muitas situações consideradas como machismo, em relação ao meu ex-namorado.
Eu resolvi me libertar e ser quem eu sou, correr atras dos meus sonhos, ser independente e está dando tudo muito certo. Tirei a pedra que estava no meu sapato 🙂
E em relação ao termo “dona de casa” também desgosto! Na época da minha avó, era considerado como uma profissão. Uma mulher somente do lar, que arruma a casa, cuida dos filhos, prepara as refeições, faz a feira e a compra do mês. As mulheres atuais estão mudando positivamente essa maneira de pensar da sociedade e dos homens, Que seguimos assim…firmes e fortes!
Grande Abs! :*
Leticia obrigada pela matéria, com certeza ajudou muita mãe ou somente esposa a sair do armário. Minha opinião sobre o texto, que com analise e estudos, recentemente mudou. Não existe igualdade entre homem e mulher, mas sim totalidade. E a totalidade que eu almejo.
Aqui deixa seu comentário uma mulher de 36 anos solteira sem filhos, que e considerada problemática pelo mundo machista de algum dos meu irmãos. Mas é assim, eles dormem neste mundo de lavagem cerebral e eu vivo acordada feliz, em paz comigo, livre leve solta desbravando o mundo. Que os homens entendam oque e uma mulher e as respeitem. Que nos entendemos os homens e os respeitem e nos de auto respeito também, sem nos vitimar.Sao esses meus desejos ao nosso mundo. Muito amor desde a India, aonde a maioria das mulheres nem conhecem o termo machismo. Amo e admiro você eternamente.
Lindo texto Letícia! Fico extremamente feliz que você tenha feito essa descoberta, mesmo que tenha demorado um pouco. A ignorância é uma benção, pois quando não sabemos de males e verdades, não os sentimos. Depois que descobrimos todos os segredos do patriarcado escondidinhos na história e nas nossas vidas, tudo fica mais difícil. Conhecer e entender o machismo, e saber que muitas mulheres ainda não entendem, é uma dor muito grande. Vamos fazendo o possível pra conscientizar as pessoas e esperando que com o tempo esses segredos fiquem cada vez menos escondidos, e que sejam, claro, abominados. Um abraço da Espanha!
Oi Leticia,
Gostei muito do seu texto e me identifiquei demais com a parte onde vc fala que vestia 3 calças, uma por cima da outra para ficar mais “encorpada”, nem eu acredito que fiz isso algum dia! Ainda mais por ser de Goiás onde faz muuuuuito calor!
Quanta bobeira, quantos rótulos e coisas desnecessárias a que nos submetemos para simplesmente sermos aceitos e “iguais” aos demais…
Graças a Deus fui capaz de me libertar de todos esses padrões impostos por essa grande sociedade machista em que vivemos.
Um abraço.