Sobre ser mulher no Egito – pequenos relatos das (não tão) pequenas opressões do dia a dia.
Eu já estive em muitos lugares do mundo onde me senti muito olhada, visada e observada apenas por minhas características físicas e pelo simples fato de ser mulher.
Com sorte, posso dizer que nunca me senti em perigo iminente, nunca fui perseguida ou sofri violências físicas graves. Mas, como mulher que viaja sozinha, ando coletando experiências que às vezes precisam sair de mim. Por isso as escrevo.
Sobre ser mulher no Egito – pequenos relatos das (não tão) pequenas opressões do dia a dia
No dia 03 de janeiro – eu anotei a data pra lembrá-la – fui assediada por um grupo de crianças egípcias de, no máximo, 8 anos. Talvez me falte sabedoria e/ou visão de mundo pra entender o tipo de assédio. Eu cogito sim, que forma atos inocentes de crianças curiosas, mas algo em mim me impede de culpar a inocência completamente.
Em um bairro do Cairo que leva o nome de Garbage City (“cidade do lixo”, em tradução literal) e é absolutamente fascinante, vivi essa experiência desconfortável. Fora da listas de roteiros maravilhosos pra seguir no Cairo, a cidade do lixo é uma experiência crua e uma aula de visão de mundo.
O bairro leva esse nome por concentrar cerca de 260 mil Zabbaleens – as “pessoas do lixo”, em tradução direta do termo. Cerca de 80 anos atrás, a área começou a ser super povoada por muitos que fugiam da perseguição religiosa e se tornou casa pra uma minoria no Egito que exerce o cristianismo. Vale ressaltar, nesse caso, que há muitos cristãos espalhados por outras áreas do Cairo e há igrejas na cidade, porém na Cidade do Lixo, a expressão é mais livre e há símbolos católicos espalhados por toda a parte.
Eu estava na garupa da motocicleta do meu namorado e vestia uma bermuda de pano. É estranho pensar que eu ainda me sinta na obrigação de explicar o que vestia, queria não sentir essa necessidade. A grande verdade é que em muitos meses de Egito, a única vez que não vesti calça foi quando fui ao litoral pra visitar o Mar Vermelho.
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Vale mencionar que até os próprios locais – algumas meninas e mulheres com quem conversei – têm o desejo de mudar para a região, justamente pelo fato de lá poderem usufruir de um certo tipo de liberdade que não se tem em outras regiões do país.
Uma vez, andando nos arredores das pirâmides, avistei uma turista vestindo shorts jeans. Acho que foi a primeira vez que vi alguém usando shorts no Cairo. Estávamos em uma temporada de dias ensolarados, abafados, lindos. Os olhares que ela recebia eram apavorantes. Para ser sincera, até minha mãe questionou logo de cara.
Eu mandei uma mensagem dizendo que algo bem desconfortável havia acontecido comigo e a primeira reação dela ao saber do assédio foi perguntar: “por quê, filha?”.
Eu consigo entender o lado racional do motivo de eu ter sido apalpada, com vontade, por meninos de oito anos, enfim eu e meu namorado naturalmente chamamos atenção por sermos estrangeiros brancos e tatuados, dirigindo uma moto moderna. Porém, parte de mim gostaria de não ter a capacidade de normalizar isso.
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Recentemente fui tomar um sorvete com uma amiga cristã e conversamos sobre as sanções que as mulheres sofrem por aqui. Ela tem um desejo enorme de morar fora do Egito e sempre batemos uma papo legal sobre misoginia, repressão e desrespeito às mulheres no Egito.
Ela é uma mulher local que não confia em ninguém, não sorri a toa quando anda na rua e está sempre blindada. Os pais a obrigam a estar em casa antes das 9 da noite todos os dias, porque acreditam que “mulher sozinha na rua de noite é sinal de desonra”.
Minha amiga tem 32 anos e ainda luta pra colocar em prática o desejo de ter seu próprio espaço. Os pais só abençoam a decisão se ela tiver um motivo pra sair de casa; arrumar um emprego bom em outra localidade ou voltar a estudar. Na visão da família dela, mulher que sai de casa sem motivo aparente é sinal de um desejo de ser promíscua, de aproveitar a vida de uma forma que a religião não permite. Ela segue em busca de oportunidades de emprego fora do Cairo e, pra ser bem sincera, espero que encontre – e logo.
Começando a entender a rotina
Meu namorado mora em Alexandria – cidade na beira do Mediterrâneo a cerca de 3 horas do Cairo. Toda vez que pego o trem para visitá-lo com minha malinha cor de rosa de tamanho carry on, sou extremamente visada e comentada na plataforma.
Agora, depois de um tempo de Egito (já são 4 meses e contando), acho até um pouco engraçado, porque apesar da mala e da cara, eu não sou mais uma mera turista. Já posso dizer que consigo me encaixar, entender e fazer parte, de forma funcional, da rotina e dos paradigmas que rolam por aqui.
São muitas as vezes que me oferecem ajuda com as malas, ou pra ler o número da plataforma ou entender as direções da estação de trem. A conversa vira outra quando menciono a existência do namorado e passo a ser obrigada a dar uma quantidade desconfortável de informações para ser deixada em paz. Uma vez alguém esperou o tal namorado aparecer para acreditar e sair andando.
Muitas vezes temos que mencionar que somos casados para que os olhares diminuam em hotéis ou restaurantes, uma vez que o conceito de namoro livre é muito mal digerido por aqui. Para muitos, é inaceitável uma mulher na garupa de uma moto (ou dentro do carro) de alguém que não seja seu marido.
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Mal sabem eles que eu e meu parceiro rodamos o país todo em duas rodas, somos felizes e nunca precisamos falar de casamento para que essa felicidade seja selada.
Já aconteceu também de eu ser questionada ferozmente por um grupo de amigos, em uma viagem ao oásis, o motivo de eu ser “tão velha” e ainda não ter filhos. Sem querer, choquei o grupinho ao mencionar que quero demais formar uma família, mas definitivamente não agora aos meus muitos 27 anos.
Como mencionei anteriormente, já fui mulher viajante em muitos cantos. Nos metrôs da China, onde muitas fotos discretas foram tiradas; na barreira entre Israel e Palestina; numa vila no interior da Tanzânia, onde eu era uma das 3 pessoas brancas que moravam ali e na Índia, por onde dirigi uma scooter vermelha por dias com minha mãe na garupa.
Já estive em lugares desafiadores e, ainda assim, o Egito me surpreendeu.
Eu gosto muito de muitas coisas por aqui. Amo a vivacidade do país, a comida sempre deliciosa, as pessoas incríveis com as quais me conectei, a dose diária e intensa de cultura que tanto me ensina. Porém, são muitos os momentos em que lamento pela vida de outras mulheres e meninas que nunca experimentaram a liberdade que eu tanto amo ter e que, por tê-la, tenho que lidar com todos os diários estranhamentos mencionados no decorrer desse texto.
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