Você tem certeza que é brasileira?
Identidade nacional é uma coisa complicada. Centenas de livros já foram escritos sobre as nossas comunidades imaginárias e o que une pessoas de um mesmo país. Uma das motivações que eu tinha para morar fora do Brasil quando eu era adolescente era um fetiche com a ideia de que eu sempre fui diferente do que era esperado de uma pessoa brasileira. No auge da minha arrogância, eu pensava ser melhor do que todo esse pessoal que gosta de futebol, de funk, de pagode, de calor, de verão, de Carnaval.
A primeira vez que morei no exterior foi em Londres, dez anos atrás. Eu trabalhava num pub e toda vez alguém me perguntava porque eu, uma brasileira, estava morando num lugar cinzento como a Inglaterra. Você provavelmente deve saber que os ingleses são levemente obcecados por falar sobre o clima. Aí eu tinha que explicar todas as diferenças de clima do Brasil, sobre a umidade de Porto Alegre, sobre como eu não morava na praia, e na realidade, como eu nem gostava muito de calor. Era sempre uma série de perguntas mais ou menos nesta ordem:
– Como assim você não gosta de calor?
– Ah, eu não gosto de suar.
– Mas você gosta de futebol?
– Não…
– Mas e você sabe dançar samba?
– Não…
– Mas e o Carnaval?
– Ah, eu não gosto de multidões…
– Você tem certeza que é brasileira?
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E por muito tempo foi motivo de certo orgulho para mim pensar que eu era melhor, por não ser clichê. Por me diferenciar do comum. Acho que muito era da formação da identidade do jovem adulto. Eu não me encaixava em muitos dos padrões esperados de uma adolescente “normal”: fui da galera do heavy metal, não era feminina, era uma leitora voraz. Esses marcos de identidade serviram para a formação de uma arrogância, mas também de certa solidão. No fim do dia, as pessoas com quem eu tinha mais vínculo e em quem eu mais confiava em momentos de dificuldade fora do Brasil, eram amigas brasileiras. Era mais fácil a coexistência. Ainda assim, eu permanecia com a implicância de achar “breguíssimo” ficar andando com a bandeira do Brasil no festival de música de Glastonbury, por exemplo.
Ao mesmo tempo, estar longe de casa é também um jeito de nos oferecer um olhar nostálgico. Cheguei em Londres no auge da crise financeira que atingia a Europa e os Estados Unidos. As nações dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China, e mais tarde África do Sul) vinham na contramão, meio que sem crise – ou só com uma “marolinha” como disse o ex-presidente Lula. Era uma boa época para abraçar a identidade brasileira, em que o país estava numa onda alta de autoestima e desenvolvimento aos olhos de fora – e de muita gente de dentro também.
Morar fora, num lugar que sempre foi seu sonho, também serve para estourar algumas bolhas. Enxergar o famoso teto de vidro. O meu começo em Londres não foi fácil: sem dinheiro e sem emprego, mas eu ainda mantinha o lema “melhor pobre em Londres do que ok no Brasil”. Com o tempo, foi cansando passar dificuldade – mesmo depois de arranjar um emprego. Burocracia de imigração pode ser brutal (tem algum lugar em que não é?) e muitas vezes eu só tinha aquela voz na cabeça dizendo “pelo menos no Brasil ninguém quer te expulsar…”. Tem a vitória de resolver os problemas, mas tem o cansaço de ter que ter problemas e aprender como tudo funciona em outro lugar.
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À medida que as pessoas iam embora – eis o problema de cidades cosmopolitas: você vai mais em festas de despedida do que em aniversários –, foi ficando mais difícil criar vínculos. Ter um emprego, curtir Londres, viajar pela Europa ocasionalmente, poder comprar livros por menos de £5 não preenchiam vazios de relação e de ambição. Para a minha grande tristeza, de quem tinha certeza que eu tinha nascido para morar fora porque eu não me identificava como brasileira, eu sentia falta do Brasil. Em algum sentido, era quase sentir falta de ser apreciada por uma burocracia que não me via como intrusa, de uma burocracia que não me cobrava mais por eu ser estrangeira.
Voltei ao Brasil com uma noção muito maior de humildade sobre quem eu achava que eu era. Mas ainda voltei ao Brasil me achando diferente do “brasileiro médio”: eu ainda não gosto de futebol, de funk, de samba, de calor, de verão, de Carnaval. Eu voltei com a mentalidade de muita gente que vive fora: vou voltar ao Brasil para fazer do país um lugar melhor. Veja bem, minha arrogância ainda estava na base do discurso. Eu, uma brasileira mais esclarecida, que tinha superado barreiras de classe e era uma intelectual. Grande nada.
Saí do Brasil de novo para fazer mestrado fora, mas dessa vez sem a ambição de ficar para sempre fora do país. Surpreendentemente, o meu grupo de amigos na China também era composto majoritariamente de brasileiros. A Júlia que foi para Londres em 2008 tinha os dizeres de “se eu quisesse andar com brasileiro eu ficava no Brasil” – ainda que muitas das minhas amigas mais próximas fossem brasileiras. E elas foram grande parte do meu aprendizado de que ser brasileira não era motivo de vergonha. Os 5 anos de Brasil entre morar em Londres e em Pequim me mostraram que os meus preconceitos com boa parte do que eu não gosto: futebol, funk, samba, calor, verão e Carnaval, eram uma negação elitista que eu associava com ser brasileira. Não podia eu, leitora de Jane Austen e fã de Sherlock Holmes, ter nascido no país errado? Os símbolos do que cria a identidade nacional são extremamente importantes e me sentia rejeitada e rejeitando o brasileirismo, porque não me enxergava neles.
Mas então, o que é ser brasileira em 2018?
As nossas identidades são relacionais: eu sou sempre em relação a alguém. Uma penca de autores e autoras muito mais capacitados do que eu, já discutiram o que é a identidade brasileira. Contudo, a lição que ficou desses exercícios de morar fora, de voltar e de ir embora de novo (e no futuro de novo também), é de que não existe um só jeito de ser brasileira. Eu encontrei minha brasilidade na feijoada, no sorriso de um bom dia sincero, no apreço pelo inesperado e pelo improviso que permeia o nosso dia a dia, no sorriso da galera numa roda de samba, na xícara de Nescafé vermelha presente em todo prédio público do Brasil. Mais do que tudo, eu encontrei minha brasilidade nas minhas relações com outros brasileiros e brasileiras, na nostalgia, na alegria, e até nas angústias.
2 Comments
Muito bom texto, Julia!
Adorei me reconhecer brasileira depois que me mudei para a Irlanda. Com a diferença gritante entre os dois países, me vi apreciando coisas que nem me dava conta: bom dia para os outros, abraços e beijos, amizade fácil entre outras coisas. Estou agora na Espanha e ainda bem que encontro algumas dessas coisas por aqui 🙂
Excelente texto. Me fez refletir um bocado. Obrigado por compartilhar seus sentimentos.