Desde que cheguei ao Chile, sempre me chamou a atenção como a memória da ditadura militar ainda é muito viva na população, mesmo entre os mais jovens que não viveram esse período existe uma espécie de cuidado ao falar do regime militar, provavelmente, adquirido ao escutar as memórias e narrativas daqueles que o conheceram de perto. Claro que existem aqueles que se lembram dessa época com certa nostalgia e sempre argumentam que nesses anos não havia criminalidade e que se podia andar calmamente pelas ruas e a qualquer hora. Por outro lado, há aqueles que carregam na memória as imagens dos militares invadindo a casa de algum vizinho e o levando à força sem que ninguém mais soubesse do seu paradeiro ou o que lhe aconteceu e o medo era parte constante do dia-a-dia.
Ao contrário do Brasil que a ditadura militar é só mais um capítulo dos livros de história, a ditadura militar no Chile foi um episódio da História do país que ainda hoje produz muita comoção social. O dia 11 de setembro, dia de aniversário do golpe, é marcado por um lado por manifestações violentas, em alguns setores do país, cujos manifestantes (também conhecidos como encapuchados por andar com o rosto coberto), muitas vezes vinculados a grupos anarquistas, se aproveitam do momento para enfrentar-se com a polícia como forma de protesto contra as autoridades, à economia e à insatisfação com a forma de governar.
Por outro lado, existem passeatas pacíficas em que as pessoas depositam flores nos centros de detenção e tortura ao longo do país. Também existem os velatons, uma espécie de procissão em que as pessoas caminham com velas nas mãos até os mesmos centros de tortura como uma forma de homenagear as vítimas. Há também muitas apresentações gratuitas de artistas nacionais que, muitas vezes, citam ou cantam canções de artistas mortos ou desaparecidos durante o governo militar, como acontece com as músicas de Víctor Jara.
Mas afinal, por quê lembrar-se de um momento da História do país tão carregado de sentimentos e memória tão violenta?
É importante lembrar-se deste momento para que a morte das inúmeras vítimas não tenha sido em vão, para que se conheçam suas histórias e o que lhes aconteceu. Até hoje não se sabe precisar quantos foram, o informe oficial calcula 3.065 mortos, mas há números que chegam a mais 40.000 vítimas segundo relatório de uma das comissões da verdade.
Não se pode esquecer esse capítulo da história para que momentos como esses não voltem a se repetir e para que as novas gerações possam conhecer a história do seu país e trabalhar para evitar que o Estado, que deveria protegê-los, use de violência e truculência contra sua própria população novamente.
Deve lembrar-se para que se exija justiça, para que as famílias possam saber o que aconteceu com seus familiares e nos casos possíveis (já que há muitos desaparecidos), possam enterrar seus mortos. Infelizmente, muitos dos mentores do golpe, como Augusto Pinochet, morreram sem que fossem julgados pelos seus crimes.
Para ajudar nesse processo se instalou algumas comissões de investigação para descobrir a verdade sobre esse período de ditadura militar. A primeira terminou com o Informe Rettig (1991) e reconheceu 2.279 mortos, a segunda conhecida como Comissão Valech, em homenagem ao ex-bispo Sergio Valech que presidiu a comissão até seu falecimento, foi iniciada no ano de 2003 e produziu dois relatórios. O primeiro reconheceu mais de 30.000 vítimas do regime militar, o segundo, divulgado no ano de 2011, produziu um relatório em que aparecem 40.018 vítimas. Para quem quer saber mais sobre o tema, recomendo uma visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Vale a pena ler o artigo da colunista do BPM, Gislaine Morais que traz mais dicas sobre o local.
Também recomendo alguns filmes que tratam do assunto. O primeiro deles é A Casa dos Espíritos (1993), baseado na obra do mesmo nome escrita por Isabel Allende que trata da história de uma família de classe alta chilena que passa por diversos acontecimentos do país ao longo de três gerações desde o século XIX até o ano de 1973 em que culmina o golpe de Estado.
O segundo intitulado Machuca (2004) conta a estória de dois meninos de 11 anos, um de família privilegiada e outro de família pobre que vive em uma comunidade mais afastada na cidade de Santiago. Ambos se conhecem no colégio dirigido pelo padre McEnroe que implanta um projeto de integração entre crianças de diferentes classes sociais. No contexto em que ocorre o golpe militar, os dois garotos estabelecem uma amizade e descobrem as distintas realidades de cada um e as grandes diferenças que assolam o país.
O terceiro tem o título de Dawson, Isla 10 (2009) é baseado na obra de Sérgio Bitar que relata a estória de colaboradores e ministros do governo Allende que foram levados pelos militares de Pinochet para um campo de concentração em uma ilha no extremo sul do país. Inspirado no modelo nazista, os prisioneiros são marcados com números como forma de tortura psicológica e com o propósito de verem sua identidade esquecida.
Por último, recomendo o filme NO (2012) que conta como foi a campanha de marketing no período que antecede o plebiscito que iria definir a manutenção de Pinochet no poder. Este filme usa muitas imagens reais da época e da publicidade que contrasta os dois lados da campanha, os que eram a favor e os que eram contra a continuação do governo militar.
Também recomendo o livro, publicado em português, A Sombra do Ditador: Memórias Políticas do Chile sob Pinochet se trata das memórias de Heraldo Muñoz, atual Ministro de Relações Exteriores do governo de Michelle Bachelet, que abrange a tensão que antecede o golpe, o exílio do autor e sua participação no processo de redemocratização do país.
Muito do que acontece hoje no Chile ainda é consequência desse momento da história do país, desde o sistema de saúde, o sistema de previdência e até a Constituição. Portanto, é uma parte da história que não pode ser ignorada para quem quer entender como funcionam as coisas por aqui.
1 Comment
Renata, só precisa dar uma olhadinha no otro lado da moeda. O dia 11 de setembro é também o dia da liberdade do marxismo em Chile e por isso gostaria também ler algumas palavras suas. Se nao for assim, entao a sua carta é muito pobre (desculpa se nao falo bem a sua língua mas acho que da para entender).