A sangrenta Sexta-Feira Santa nas Filipinas.
A Reconstituição da Crucificação de Cristo é uma tradição religiosa que ocorre às sextas-feiras Santas (ou Biyernes Santo) e atrai turistas do mundo inteiro para a pequena cidade de San Fernando, na região de Pampanga, ao norte de Manila.
Em 2014, enquanto escrevia sobre as tradições da semana santa nas ilhas de Lost, reservei um parágrafo para expressar minha revolta opinião sobre o assunto. Mas, uma coisa é ler sobre a tradição e outra é assisti-la.
Em 2015, como não tínhamos planos para esse feriado, decidi assistir a tal procissão com um grupo de amigos. Afinal, não poderia jamais escrever bem sobre algo que nunca havia presenciado.
Contratamos um tour que saía de Manila às 8h da manhã e chegamos à cidade de San Fernando pouco depois das 9h. Mal havíamos chegado à cidade e já vimos um pequeno grupo de flagelantes que caminhavam e se flagelavam entre os carros. Tive vontade de gritar para o motorista: “para tudo! Eu preciso dessa foto!”. Afinal, a cena de um pequeno grupo de pessoas flagelando-se no meio do transito parecia algo surreal, quase icônico.
No caminho até o empoeirado vilarejo de San Pedro Cutud, vimos outros flagelantes e uma ou duas pessoas que carregavam nas costas enormes cruzes feitas com o caule da palmeira. O dia de penitência começava…
Os flagelantes, com os rostos cobertos e coroas feitas de louro, palma ou rosas, caminham pelas ruas flagelando-se com um chicote feito de pedaços de bambu pendurados em uma grossa corda. Esse episódio faz referencia a Flagelação de Cristo e os flagelantes o praticam como forma de autopunição por pecados cometidos, cumprimento de uma panatà (ou promessa) ou agradecimento a uma graça alcançada através da mortificação da carne.
Em frente à igreja a qual a van estacionou, muitos flagelantes entregavam os chicotes para seus acompanhantes, se ajoelhavam e deitavam, enquanto o açoite continuava. Depois de horas de atrito entre o bambu e a pele, as costas ficam em carne viva e o sangue começa a respingar pelas pontas de bambu em tudo que está ao redor: carros, pedestres e curiosos (como eu) que estavam lá para assistir acabam com gotas de sangue pelas roupas e corpo. Os que os ajudam, acabam cobertos com gotas de sangue por todos os lados.
Já sabia que isso aconteceria, mas achei que fosse ser muito mais sangrento. Na minha imaginação, acreditava que sairia de lá como se houvesse participado de um episódio de Vampire Diaries, mas, claro, isso não aconteceu; apenas umas gotinhas de sangue espirraram nas minhas pernas e na minha roupa.
E aquilo parecia um show, o espetáculo da mortificação da carne. A Reconstituição da Crucificação de San Fernando é a que mais atrai turistas em todas as Filipinas, ainda que não seja o único lugar no qual é praticado. É um dos dias do ano que o fluxo de pessoas nas ruas poeirentas do pequeno povoado aumenta e, entre flagelantes, turistas e locais, barracas de refrescos, vendedores de peixinhos, bugigangas e pintinhos coloridos, como aqueles que ganhávamos em feiras de animais, mas em diversas cores – sim, é bizarro, caminhamos até o monte reservado para a reconstituição da crucificação.
A sangrenta Sexta-Feira Santa nas Filipinas
A cena que mais me chocou nessa caminhada não foram os penitentes, no entanto; estes, eu já esperava ver. O que mais me impressionou foi um dos meninos locais, por volta de seus três anos, que assistia a procissão e brincava com o açoite, imitando aqueles que ele via.
Ao chegar no pequeno monte, rodeado por barracas e vendedores ambulantes, agarramo-nos às grades que cercavam o caminho até as cruzes no topo do monte e ali ficamos por uma hora, enquanto esperávamos o espetáculo começar. Sob o sol escaldante, chegavam, de tempos em tempos, pequenos grupos de flagelantes, alguns com seus acompanhantes que lhes levavam água, outros só e cambaleantes devido o sol, o calor e, provavelmente, a dor. Ao chegar, alguns se ajoelhavam, outros deitavam e outros seguiam seus caminhos até as cruzes localizadas no alto do morro. Em frente a estas, todos se ajoelhavam, oravam e desciam o morro, alguns ainda com o rosto coberto, outros já não, com uma expressão de alívio no rosto, como se o dever já tivesse sido cumprido.
Como eu e meus amigos, espectadores chegavam e encontravam seus lugares em meio às pessoas e sombrinhas e suas expressões misturavam fascínio e curiosidade, comoção e fé.
Em meio a isso, ouvíamos a uma espécie de missa, na qual as palavras do padre eram intercaladas por Ave Marias e Pai Nossos. As palavras “Jesus, how can I be your friend and follower if I do not carry my own cross?” (Jesus, como posso ser seu amigo e seguidor se eu não carregar a minha cruz?), naquele momento, pareciam que eram literalmente interpretadas.
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Os romanos, ao chegarem, foram vaiados e a reconstituição começava. Pouco depois, chegou Ruben Enaje, aquele que interpretava Cristo e que foi, literalmente, pregado à cruz; os que fizeram os papéis dos ladrões Dimas e Gestas foram apenas amarrados a elas. É o 29º ano que o pintor repete o mesmo ato, como parte de agradecimento ao ter sobrevivido a uma queda de um edifício. E, assim, a reconstituição acabava. O grupo de pessoas caminhava em bando pelas estradas de terra e poeira, em meio aos carros cobertos com gotas de sangue que respingaram.
Tudo, desde os flagelantes até a crucificação, é chocante e a Igreja Católica não aprova. Ainda assim, por um misto de devoção quase cega ao catolicismo e crença popular, ele continua existindo e atrai cada vez mais turistas.
Particularmente, a mortificação da carne não é algo que faria porque acredito que devemos cuidar de nossos corpos e não maltrata-los (ainda que seja fumante de longa data…), mas tampouco subiria até a Igreja do Bonfim de joelhos. Bom, cada um com a suas manias e sua fé. Minha religião é o amor na que tento aceitar as coisas e pessoas da forma que são. De qualquer forma, assistir a esse espetáculo já está fora da minha bucket list!
2 Comments
Eu também fui lá e achei a coisa mais bizarre do mundo. O cheiro de sangue no ar, criancas fantasiadas de carrasco, um horror sem precedents para mim :/
Por certo se eu estivesse em um lugar assim não passaria muito bem tenho muita empatia (defeito congênito), mas Deus, Jesus ou sei lá quem, deixou espaços no homem que acho que devem ser preenchidos, por fé, crença, não crença, bizarrice e etc. O interessante é o exemplo para as crianças, pelo menos apanhar deve ser o inicio do ensinamento. Muito boa a matéria!Abraços!!!