Se tem um hábito que não perdi nesses quase dois anos vivendo no Canadá é o de assistir televisão. Há quem critique, mas no meu ponto de vista é uma ótima forma de aprender sobre a cultura local. Assim como no Brasil, há programas de qualidade questionável, mas há também aqueles que nos fazem pensar e a partir dos quais eu identifico temas interessantes para compartilhar com vocês.
Assistindo o Y’a du monde à messe, conheci Charline Labonté, goleira da seleção canadense de Hockey e da equipe Canadiennes de Montréal, versão feminina do célebre Canadiens de Montréal. Jogadores de hockey ganham milhões de dólares por ano, às vezes ainda na faixa dos 20 anos. Sabe-se que existe uma grande discrepância salarial de gêneros no mundo dos esportes. No entanto, o que me surpreendeu na entrevista de Charline foi sua resposta quando questionada sobre seu salário anual: zero! Isso mesmo, nenhuma remuneração é obtida jogando pela equipe de Montréal. Por fazer parte da seleção canadense nas olimpíadas, ela conta com um patrocínio dos governos federal e québécois. Por outro lado, a realidade da maioria das jogadoras de hockey da liga feminina canadense não é essa.
Charline conta que essas mulheres normalmente trabalham e/ou estudam durante o dia e treinam à noite. Compram seus equipamentos que, diga-se de passagem, não são nada baratos com seus próprios recursos financeiros. Se um bastão quebra, coisa relativamente comum, a aquisição de um novo não sai por menos de 200 dólares. Portanto, a conclusão é que elas jogam por amor ao esporte, mesmo com toda essa falta de apoio e reconhecimento. É importante dizer que a seleção feminina de hockey já foi campeã olímpica 4 vezes. Charline contribuiu para a conquista de três dessas medalhas. Os jogos olímpicos acabam sendo a única vitrine para colocar em evidência toda dedicação e talento dessas mulheres de fibra.
Depois dessa entrevista, resolvi pesquisar um pouco sobre a questão da desigualdade de gêneros no Canadá, um país relativamente vanguardista tanto na abertura e aceitação das diferenças – sejam elas culturais ou não – quanto no esforço pela diminuição das lacunas sociais. Descobri um relatório chamado The best and worst places to be a woman in Canada 2015 – The gender gap in Canada’s 25 biggest cities (Os melhores e piores lugares para ser mulher no Canadá 2015 – A lacuna de gêneros nas 25 maiores cidades do Canadá).
O estudo foi realizado pelo Canadian Centre for Policy Alternatives (Centro Canadense para Alternativas de políticas públicas), sob a supervisão da pesquisadora Kate McInturff e faz parte do projeto Making women count (Fazendo a mulher valer a pena, numa tradução livre). O relatório produzido destaca as diferenças entre homens e mulheres no que se refere à segurança econômica, liderança, saúde, segurança pessoal e educação. O objetivo é mensurar as lacunas de gênero nas comunidades canadenses para que sejam feitas escolhas corretas em relação a políticas públicas que devem ser implementadas. Nunca havia pensado essa questão pelo ponto de vista mais hiper-local.
Confesso que fiquei intrigada e resolvi compartilhar com vocês as principais conclusões desta pesquisa. Para fins ilustrativos, o ranking das 25 melhores cidades canadenses para ser mulher em 2015 era este:
Apresento a seguir a tradução em formato de citação direta das principais descobertas do estudo. Para ler a reportagem original em inglês, clique aqui.
- Cidades em Québec obtêm melhores resultados que cidades de outras províncias, destacando-se Gatineau, Quebec City e Montreal no ranking das Top 10, graças a políticas provinciais dirigidas a desafios específicos que as mulheres enfrentam no que se refere ao equilíbrio entre trabalho e vida em família.
- Cidades com grandes empregadores do setor público, como Victoria e Gatineau, também se destacam – particularmente ao estreitar a lacuna salarial e promover mulheres em cargos de gerenciamento em nível sênior.
- Mulheres em Gatineau apresentam a menor lacuna salarial, ganhando o equivalente a 0,87 para cada 1 dólar pago a um homem.
- Mulheres em Victoria chegam mais perto em relação ao mesmo nível de emprego que homens, ficando atrás por meros 3%.
- Regiões que dependem de indústrias predominantemente masculinas tendem a ficar no final da lista, com Calgary, Edmonton e Kitchener-Cambridge-Waterloo assumindo as três últimas posições.
- Cidades das pradarias, como Winnipeg e Saskatoon, assim como cidades do nordeste como Halifax e St. John’s, apresentam as menores lacunas em relação à saúde.
- Ottawa possui o maior número de universitárias graduadas e mulheres em Oshawa são mais propensas a terminar uma faculdade ou cursos de nível técnico.
- Taxas de abuso sexual, assédio e violência doméstica continuam persistentemente altas no Canadá, com poucas mudanças nos últimos 20 anos.
O relatório de 2016 já apresenta mudanças expressivas no ranking de 2015, o que pode ser visualizado no infográfico abaixo.
Em geral, como a pesquisa se dá com base em índices econômicos, sobretudo aqueles ligados a taxas de desemprego e pobreza, pode-se dizer que algumas mudanças estejam ligadas ao retorno do censo nacional em formato mais amplo, após determinação do Primeiro Ministro Justin Trudeau. Segundo o relatório de 2016, existe um limite para que dados quantitativos possam realmente expressar diferenças em nível individual e comunitário sobre as vidas de homens e mulheres. Como limitações, além de considerar apenas a divisão homem e mulher como referência de identidade, a maior parte dos resultados relacionados à pobreza e ao desemprego não são desdobrados segundo raça, status de imigração, deficiências, identidade sexual ou status de aborígene.
Pessoalmente, considero que sou privilegiada por morar em Québec, cidade que continua bem posicionada nesse ranking, ainda que tenha muito caminho a percorrer para realmente manter-se fiel a seus valores de igualdade entre homens e mulheres. E você? O que pensa sobre essa pesquisa? Como você se vê em relação à cidade, região ou país em que mora?
Para saber um pouco mais sobre as questões femininas no Canadá e no Québec, recomendo meus artigos anteriores:
Um retrato franco-canadense da condição feminina
A imagem da mulher québécoise – Parte 1
A imagem da mulher québécoise – Parte 2