Do lado de dentro dos muros cor-de-rosa que me separam da avenida Park Street — com sua mistura de arquitetura colonial britânica, edifícios modernos e a decadência caótica comum às grandes cidades indianas —, até mesmo o sol parece ter dificuldades de entrar, tendo de transpor o filtro composto pela copa das árvores centenárias.
As alamedas que sigo percorrem caminhos de silêncio e vazio, tão contrários à vida lá fora. Estou no cemitério inglês de South Park Street, fundado em 1767. Além de mim — e de alguns casais de namorados que se julgam invisíveis atrás dos túmulos —, alguns dos personagens principais que fizeram a história desta cidade descansam na eternidade sob estruturas de cimento em formato de obeliscos, sarcófagos, cúpulas, templos… São em sua maioria mercadores, mulheres, crianças, jovens soldados e marinheiros que sucumbiram às doenças tropicais da terra inóspita.
A presença inglesa é parte indissociável da história e identidade de Calcutá. Até mesmo a fundação da cidade foi atribuída a um britânico — Job Charnock — funcionário da Companhia Inglesa das Índias Orientais. O governo indiano, no entanto, contestou essa versão da história, alegando existir na região um conjunto de vilarejos anterior à chegada dos ingleses. Um desses povoados, Kalikat, deu origem ao nome da cidade no idioma bengali — Kolkata.
Kolkata é a cidade de Kali, a grande mãe e deusa negra da religião hindu. Um dos maiores templos a ela dedicados — o Kalighat Kali Temple — encontra-se aqui e é visitado por milhares de devotos e turistas o ano todo.
Em nenhum outro lugar do subcontinente o solo indiano se mostrou tão fértil à mistura indo-britânica. Antes de ser transferida para Nova Délhi, em 1911, a sede do império inglês na Índia era em Calcutá. Aqui, o pensamento floresceu por meio do amálgama entre o interesse inglês pelas culturas orientais, imbuído da paixão e dedicação acadêmicas, com a complexidade e sofisticação da cultura indiana.
A fusão das filosofias europeias às tradições locais deu origem à Renascença em Bengala, que teve no poeta e filósofo Rabindranath Tagore um de seus principais expoentes. Tagore foi o primeiro não-europeu a ganhar o Prêmio Nobel. A casa onde nasceu e passou seus últimos dias — Jorasanko Thakur Bari — é hoje palco de vários programas culturais e festivais de arte.
A tradição intelectual, unida ao espírito revolucionário e à natureza contestadora do povo bengali, fez de Calcutá palco de violentos conflitos e manifestações que marcaram a história da Índia. Foi também o que originou um ditado popular não muito apreciado no resto do país — “o que Bengala pensa hoje, a Índia pensará amanhã”.
Mas foi esse amor às ideias e à argumentação que fez surgir o que hoje é uma instituição no estado — a adda.
Adda é uma conversa sem fim, onde são exercitadas a arte do debate e a arte de racionalizar. Os diferentes assuntos fluem, como um rio. O que se inicia com as últimas polêmicas sobre o desenvolvimento tecnológico pode terminar com fofocas escandalosas do mundo do cinema, passando ainda por literatura, gastronomia e esportes.
Os melhores lugares para se vivenciar uma boa adda são os cafés de Calcutá, como o College Street Coffee House, que, com suas bebidas e comidas típicas, oferece a energia necessária ao debate.
A culinária de Calcutá é famosa por seu estilo rápido e prático, principalmente se comparada aos pratos elaborados do Norte e Noroeste da Índia. A comida de rua é, assim, outra instituição da cidade. Famosa em todo o país e parte indispensável da verdadeira experiência local, sua origem também está ligada aos britânicos, pois foi durante seu governo que surgiu aqui uma nova classe social — os babus.
Auxiliares administrativos, escriturários e burocratas do governo anglo-indiano, os babus buscavam uma alimentação que fosse adequada à intensa rotina de trabalho. O centro administrativo ficou famoso pelos pequenos restaurantes e vendedores ambulantes de comida. Dacres Lane, conhecida como Food Alley – a alameda da comida -, é hoje o ponto de encontro mais conhecido dos aventureiros gastronômicos.
Em uma boa caminhada por Calcutá, começamos em Dacres Lane com um kati roll — uma espécie de panqueca recheada com carne, vegetais e temperada com limão — ou com um puchcka, apresentado em meu texto sobre a culinária indiana com o nome de pani puri, como é conhecido em Délhi. Continuamos através de New Market, o vibrante mercado novo, com mais opções de comida e compras em geral. Seguimos então em direção ao Victoria Memorial, uma das construções mais imponentes da cidade, feita de mármore branco e cercada por belos jardins. Passamos pela casa da Madre Teresa de Calcutá, sede de sua ordem Missionárias da Caridade, onde a religiosa morou entre 1953 e 1997. E terminamos onde nossa história começa, no cemitério inglês de South Park Street.
Com o dia chegando ao fim, decido fazer uma última visita antes de voltar para casa.
Uma lápide apagada e algumas pedras no chão marcam o lugar onde se encontram os restos mortais de Walter Landor Dickens, filho do célebre escritor inglês Charles Dickens.
Durante os anos que vivi em Londres, passei muitas tardes lendo a obra de Dickens em um café na casa onde o escritor viveu, transformada hoje em um museu. Foi por meio desse diálogo com Dickens que comecei a escrever e criei o site Querido Vizinho, onde conto a ele, e ao resto do mundo, minhas aventuras por terras estrangeiras.
Dickens, um pai amoroso, despediu-se do filho de 16 anos em 1857, quando este veio para a Índia como cadete do exército britânico. Naquele momento, meu querido vizinho não sabia que nunca mais veria seu filho, e tampouco teria a chance de um dia visitar seu túmulo.
Assim decido deixar Calcutá: com um recado vindo de longe — uma prece e uma flor sobre uma lápide empoeirada; com a certeza de que todos os caminhos pelo mundo nos levam sempre de volta ao mesmo lugar — um encontro com nós mesmos; e com a gratidão imensa que sinto por este país, a Índia, pelas descobertas e redescobertas que a cada dia tem me proporcionado.
1 Comment
Ta ai, uma cidade que não pretendo voltar tão cedo.
Minha chegada na Índia foi por Cálcuta, e depois de quase 2 dias viajando e passado o susto ao sair do aeroporto e dar de cara com a realidade indiana, fui de uber pra região do New Market (se não me engano, algo assim). Só queria chegar na minha hospedagem e descansar, a gente não conseguiu encontrar o endereço certo da hospedagem devido a muvuca e quantidade de informações que tinham ao redor, desci e resolvi ir a pé atrás do lugar. Encontrado, me disseram que eu não havia feito reserva e que estava cheio o local, dai me desesperei, falha minha, não tinha Plano-B. Seguei pela região atrás de outra hospedagem, e um senhor indiano veio comigo tentando ajudar. Ta ai uma situação que nunca vou compreender, não sei se foi por causa desse senhor que estava ao meu lado, mas entrei em uns 10 hotéis diferentes e a primeira coisa que falavam eram “full”, mas poxa, não falei nem “oi”, e quando resolviam conversar comigo e esse senhor indiano resolvia entrar, eles expulsavam ele e ele ficava como um cachorrinho de trás do vidro me esperando. Era por volta das 20h da noite, eu não tinha onde dormir, depois de muito procurar consegui um lugar muito ruim por sinal, mas como só queria passar aquela noite por ali aceitei, e esse senhor que andava comigo sempre sendo expulso por todos os lugares… que aperto, e que cilada entrei visitando a tal Calcutá.