Em uma gélida manhã de janeiro, antes mesmo do sol nascer, sigo com a multidão até às margens do rio. A ausência do trânsito caótico, dos vendedores e da aglomeração de pessoas no centro da cidade denunciam o quão cedo todos nós acordamos. A névoa e a luz fraca do alvorecer encobrem o lixo nas ruas. Vacas, cachorros e macacos que normalmente circulam por ali dormem abrigados fora de vista. E a paisagem urbana com suas velhas construções, tão camufladas pela neblina, deixa dúvidas sobre a identidade do local onde nos encontramos. Seria assim, não fosse pela atmosfera mística e o intenso sentimento de devoção no ar — estamos em Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia.
Lugar de peregrinação, milhares de pessoas vêm até aqui todos os anos para banharem-se nas águas do Ganges, dizerem adeus a seus mortos ou para viverem seus últimos dias antes de morrer. O grupo do qual faço parte vem para assistir à Aarti, uma cerimônia realizada sempre ao nascer do dia e ao cair da noite.
Enormes escadarias, chamadas de ghats, foram construídas na orla do rio e cada uma serve a um propósito. No ghat de Assi, a Aarti acontece no início do dia, mas é a do pôr do sol no Ghat Dasaswamedh a mais famosa, reunindo centenas de pessoas todas as noites.
Diante de nós, jovens sacerdotes vestidos com túnicas de seda nas cores creme e vinho alinham-se voltados para as águas. À medida que o sol vai surgindo, leques de penas de pavão, fogo e incenso são utilizados em uma coreografia fascinante cujo objetivo, dizem, é relembrar e unir-se novamente ao deus hindu, Shiva.
Parte da santíssima trindade hinduísta – composta também pelo deus criador Bhrama e o deus mantenedor Vishnu -, Shiva é o deus das transformações, o destruidor, e escolheu Varanasi há milhares de anos como sua cidade. Os sinais de sua presença estão por todos os lados, seja através da figura do jovem atlético, com uma cobra no pescoço, cabelos longos e pele azul, seja nos símbolos que o representam – o lingam e o trishula.
O lingam é o símbolo fálico ereto de Shiva. Normalmente feito de pedra, sua base oval representa a vagina, configurando a união dos aspectos masculino e feminino no processo de criação. O trishula é o tridente usado pelo deus para acabar com a ignorância do homem – um feito e tanto, que parece ter sido comprovado pela história local.
Uma das cidades mais antigas do mundo, com evidências arqueológicas de sua existência desde 1800 a.C., Varanasi foi por séculos a capital cultural da Índia. Filosofia, literatura, música, religiões e até a tradicional medicina indiana – a ayurveda – floresceram aqui. Foi também a dez quilômetros de Varanasi, em Sarnata, onde Buda proferiu o seu primeiro sermão. No entanto, não são apenas peregrinos religiosos que visitam a cidade – Varanasi é a Índia do imaginário coletivo.
As ruas são cheias de lixo, gente, vacas, vendedores, mendigos, cabras, carros, motos e dos famosos riquixás – pequenos veículos motorizados de três rodas ou charretes puxadas por homens em bicicletas. As calçadas, tomadas por vendedores de quinquilharias, artigos religiosos e comidas de toda espécie. O cheiro é o de temperos e doces, de flores usadas em oferendas, do lixo, do esgoto, do rio poluído. O trânsito, intransponível. Macacos cruzam o emaranhado de fios nos postes, enquanto ratos atravessam nosso caminho em vielas labirínticas. Varanasi não é para os fracos.
Mas também não decepciona o espírito aventureiro, que com certeza se encantará com o colorido típico das roupas indianas, os sabores exóticos da culinária local predominantemente vegetariana e com a mágica presença dos sadhus – os ascetas hindus que abdicaram da vida mundana para viverem como monges andarilhos.
Envoltos em tecidos alaranjados, alguns seminus, com longos cabelos e barbas e o símbolo de Shiva pintado na testa, eles vivem próximos aos templos ou na orla do rio. Ajudam assim a compor o cenário delineado por sacadas e janelas em arcos de antigas construções, que parecem escurecidas pela constante fumaça vinda das fogueiras de Manikarnika e Harishchandra, os ghats crematórios.
Os hindus não enterram seus mortos, queimam sua carne libertando a alma do apego ao corpo. As cinzas são jogadas no Ganges, que mais do que um rio é para eles uma deusa – a “mãe Ganga”.
Trazida à terra nos cabelos de Shiva, Ganga tem o poder de limpar os pecados daqueles que em suas águas se banham. Por isso, milhões de pessoas vêm à Varanasi todos os anos para lavarem-se nas águas extremamente poluídas do rio.
Ainda de acordo com a fé hindu, aqueles que têm a sorte de morrer em Varanasi livram-se do Samsara, o ciclo de mortes e renascimentos que rege a existência humana. Como consequência, muitas pessoas próximas da morte vêm à cidade para esperar sua hora. Algumas delas, solitárias e miseráveis, podem ser vistas deitadas em buracos escuros de construções próximas ao rio. Outras caminham pelos becos, apoiadas nos braços de seus familiares, visivelmente abalados com a perda que se aproxima.
A experiência de visitar Varanasi deve incluir um lugar para acalmar a mente e o coração. Um recanto que seja suficientemente distante da intensidade avassaladora que aqui envolve a vida e a morte. Por isso, ao fim do dia subo as escadas que me levarão ao aconchego de uma xícara de café e a um delicioso pedaço de bolo – simples, sem recheio, com calda de limão e açúcar.
Nas imediações do Ghat Dasaswamedh, encontra-se a Brown Bread Bakery, com comida simples e próxima ao paladar ocidental. Ponto de encontro dos estrangeiros que aqui decidiram se aventurar, a vista de seu terraço é a dos telhados da velha cidade, com o Ganges ao fundo. Mas, quase em frente à Brown Bread Bakery original, existe outro estabelecimento com o mesmo nome — com a diferença de ser um ambiente mofado e povoado por ratos.
O mesmo nome, donos diferentes. Pergunto então ao garçom da “verdadeira” Brown Bread Bakery como posso indicar seu restaurante e esperar que as pessoas encontrem o lugar certo. Sem me dar muita atenção, ele vira as costas e responde: É sempre o lugar certo.
Mas, caso não seja, basta atravessar a rua!
15 Comments
E esse final hem…
😉
Nione, adorei seu texto.Sou fascinada pela India. Tive o privilégio de conhecer algumas cidades indianas. Presente da minha filha que tbém escreve para o blog. Não conheci Varanasi, mas ainda tenho esperança de voltar a India e conhecer as cidades que não foi possivel conhecer. Parabéns pelo texto maravilhoso. A gente se vê por aqui. Bjs
Cássia,
Que delícia receber uma mensagem da família BPM! Principalmente daqueles que abraçam a opção que todas nós colunistas fizemos de morar fora — não é fácil. 🙂
Fico feliz que tenha gostado do texto. Varanasi é uma cidade difícil, há quem odeie e há quem ame. Só não encontrei ainda quem fique indiferente a toda aquela intensidade.
Um beijo enorme! E quando for a Varanasi, por favor, não deixe de me contar depois!!
Parabens pelo texto
Obrigada, Eliane! 🙂
Que delícia de texto! Muito bem escrito! Me envolveu e me transportou à Índia.
Parabéns, colega de BPM! 😀
Bjs,
Vivian
Vivian,
É maravilhoso um dia estar em Varanasi e outro em Varsóvia através das nossas histórias, experiências e sentimentos! Que bom que pude trazer você um pouco pra cá. Obrigada!!
E seguimos assim, viajando juntas e aprendendo muito umas com as outras! 🙂
Beijo grande! :-*
Cris, quando leio essas suas interpretações das maravilhas do nosso mundo, do mundano ao divino, tento imaginar a sua busca constante em desvendar (ou apenas adentrar) no mundo temporal com suas insondáveis espiritualidades e experiências humanas.
Eu tive a impressão que estas pessoas (solitárias e miseráveis) que buscam livrar-se do Samsara passam por um momento muito triste e tenebroso em seus últimos momentos de vida…
Adorei seu texto… faz com que possamos refletir realmente a vida que temos aqui no Brasil.
Beijos!
Adoro ter você como leitor, Marcel!
E adoro mais ainda sua vivência dos meus textos e a forma como você os enriquece.
Obrigada, meu irmão!
:-*
‘Teteca”. Desculpe-me e peço-lhe perdão por revelar neste tão simples e pobre comentário, sobre esta poesia de texto, seu muito carinhoso ‘apelido,’ que um dia, muito distante a chamei, batizando no fundo do meu coração, a pessoa que me faria tão feliz e orgulhoso, do que você é e representa para sua família. Teu marido deve sentir um orgulho enorme da esposa que tem. Espero ser premiado, logo, logo, com novos textos de sua lavra lavra. Minha querida, até breve, e que Deus lhe abençoe. Muito obrigado, meu Senhor, por ela existir. JIC.
O dia dos pais chegando e sou eu quem recebo de presente uma mensagem dessas, não é seu Ivan? 🙂
Já que revelou um segredinho, revelo outro: assim como o apelido, quem me deu a poesia foi você. Quem me fez ver o mundo por meio de palavras foi o senhor, quando me mostrou a poesia que havia feito para minha mãe ao pedi-la em namoro. Crescer com as noites de sarau na casa da tia-avó, Antonieta, em Minas, também me ajudou a ouvir a vida em versos e rimas… Sempre com o olhar da mãe, que dizia: cabeça nas nuvens, mas pé no chão! Ela sempre advertia que objetividade não se perde, e que o mundo deve ser descoberto antes de reinterpretado.
Com uma combinação de exemplos como os de vocês, o mundo que eu ganhei e sobre o qual escrevo tem um sentido muito especial.
Amos vocês de paixão! Obrigada, pai! :-*
Que linda descricao poetica da cidade! A melhor que li até hoje! De verdade…quase chorei lendo seu texto. Tenho uma verdadeira fascinacao pela India sem ainda ter ido. Sei que tenho que passar um tempo por lá. Meio louco dizer isso, né? Entendo bem qdo vc diz que as pessoas a amam ou a odeiam pq sempre ouco isso a respeito dos lugares que amo kkkkk Mais certa ainda que vou amar a experiencia. Quero estar por ai próximo ano! Ah! Sou sua colega do BPM!
Parabéns pelo texto! Muita luz pra vc!
Gislaine, como fiquei feliz com a sua mensagem!
Venha mesmo, porque normalmente são esses ‘apelos’ do coração que nos levam exatamente para onde temos que estar — e até mesmo além!
Sempre me sinto ‘abraçada’ com as mensagens das companheiras do BPM. Obrigada!!
Da Índia para o Chile, e tão perto! 🙂
Beijos :-*
Lindo, Lindo, como sempre! Emocionante como vc consegue traduzir o espirito de Varanasi. Delicia de texto! Parabéns!