Era difícil abrir os olhos. Fui surpreendida pela rajada de areia no momento em que desci do táxi. A poeira suspensa no ar exigia dos meus pulmões asmáticos mais do que eles tinham a oferecer e o sol de quarenta e seis graus fazia arder cada centímetro do corpo exposto.
Atravessei a rua entre carros, vendedores, bicicletas, cachorros, crianças e mulheres de sári. Passei pelos portões procurando abrigo dentro do mercado. Uma das escadarias do Khan Market me conduziu até um salão com ar-condicionado. O som ambiente deixava os barulhos da rua junto ao calor, do lado de fora.
Através da janela via do alto o ar marrom, o trânsito caótico e as pessoas agora silenciadas pela distância. Ao menos por enquanto, uma Índia inóspita não me incomodaria mais.
O verão em Délhi pode ser insuportável. Às altas temperaturas soma-se um clima seco, um sol escaldante, pessoas mal-humoradas. Aspectos negativos se intensificam. A sujeira, o lixo nas ruas, parecem brotar no meio do caminho. A miséria torna-se ainda mais desumana, mas o calor é justo e democrático: não poupa nem pobres nem ricos.
A saudade de casa então aperta e a vontade de ir embora, de fugir do país, torna-se imperativa.
O mal-estar não atinge somente expatriados. Tampouco é característico apenas da época atual, marcada pelos impactos negativos do crescimento econômico no meio ambiente.
Já no século XVII, durante os meses de verão, imperadores mogóis que governavam a Índia deixavam a sua capital – a Velha Délhi. Seguiam em grandes comboios transportando suas cortes em elefantes, camelos e cavalos rumo à Srinagar, nas montanhas da Caxemira.
O mesmo acontecia na Índia Colonial. Entre abril e outubro, a administração do Império inglês deixava o centro do governo, Calcutá – e mais tarde Délhi –, para se instalar em Shimla, no estado de Himachal Padrexe, na parte central dos Himalaias. Os indianos que trabalhavam junto ao governo inglês também eram transferidos com suas famílias, o que acabou dando origem, entre a elite local, à tradição de passar verões na cidade montanhosa.
Atualmente os destinos se ampliaram, mas todos os que podem deixam inevitavelmente, no verão, a capital indiana. Os que planejam visitá-la são fortemente desencorajados a fazê-lo nessa época do ano. O melhor que a cidade tem a oferecer, como seus mercados, jardins, monumentos, as vibrantes ruas da Velha Délhi, são intransitáveis sob o sol escaldante.
Àqueles que já estão aqui e que não podem sair, resta buscar refúgios na cidade para se abrigar do calor e aproveitar outros aspectos da vida em Délhi.
A capital esconde cafés, bares e restaurantes no piso superior de seus mercados típicos, ou áreas comerciais. Em todos os estilos, para todos os gostos, são ambientes modernos, cosmopolitas, sofisticados e – o que realmente interessa nesse caso – com ar condicionado.
Quem ignora a vida que continua do lado de fora e se prende à música ambiente e à decoração, pode imaginar-se em qualquer outra grande cidade do mundo – Nova Iorque, Londres, Madri. Esta, no entanto, não é a minha escolha – busco sempre autenticidade, mesmo que longe das ruas.
Por isso, naquela manhã infernal, olho pela janela do café no Khan Market e, recuperada, decido enfrentar o calor novamente – por pouco tempo. Pego um táxi em direção a Connaught Place.
Entre suas ruas circulares de prédios brancos, arcos e colunas clássicas, o centro comercial esconde um dos restaurantes mais antigos de Nova Délhi – The Embassy.
Atravesso a imensa porta de vidro bisotado e por instantes sinto ter invadido os domínios de um outro povo, outro gênero, outra época – apenas homens, indianos, nos seus setenta ou oitenta anos, ocupam as mesas. A conversa é interrompida por uma fração de segundo. Notam minha presença. Mas logo retomam seus assuntos, pois é certa a minha insignificância diante de todas as ausências que mantém aquela porta de vidro fechada – a morte, segundo dizem, é a maior concorrente do Embassy.
De segunda a sexta, os lugares vazios preenchem as manhãs do restaurante tanto quanto a conversa vibrante, o cheiro do frango sendo assado no tandoor e a trilha sonora de Richard Clayderman, que aqui, infelizmente, sobreviveu aos anos oitenta.
A amizade e a nostalgia fazem parte do tempero dos pratos, a maioria no cardápio desde 1948, ano em que o restaurante foi fundado por dois amigos vindos de Karachi, no Paquistão.
O ambiente é decadente. Os sorrisos, acolhedores. A comida, a melhor de Délhi, em minha opinião.
Nos finais de semana não há lugares vazios – mulheres, filhos, filhas e netos somam-se aos patriarcas, ocupam as mesas, preenchem lacunas e contam o próximo capítulo desta história.
Somente nos finais de semana sou às vezes reconhecida, cumprimentada por aqueles senhores cercados por suas famílias. Como se ali, naquele momento, houvesse espaço para mim, para o novo, o diferente, o inesperado. É quando permitem que eu seja parte do seu enredo. Assim como os torno parte do meu, ao sentar-me para escrever nesta manhã de verão em Délhi.
6 Comments
Que belo texto Nione, gosto muito da forma poética como descreve os lugares. Bjs ???
Obrigada, Lucinete!
Fico feliz em poder levar um pouco do “sentimento da Índia” até vocês.
Assim embarcamos todos em uma grande aventura, não é? 🙂
Grande abraço!
Em um lugar em que você presencia a amizade entre as pessoas, a nostalgia dos anos 80 na música que toca, o cheiro e o sabor dos temperos e suas comidas, é muita magia junto mesmo. Que ótima experiência você está passando Cris. Eu também estou adorando a minha permanência no interior. Mas o frio que fez este ano aqui foi demais. Há muito tempo não sentíamos temperaturas tão baixas. Mas o bom é que tudo passa e volta ao normal com a entrada da estação das chuvas aí em Délhi, onde tudo se renova. Beijos!!
Esses ciclos da natureza, Marcel, acabam por revelar que a inconstância faz parte da vida e que traz muita beleza e significado pra nossa existência.
Não é, não? 🙂
Grande beijo!
olá, estou fazendo um trabalho sobre a moda indiana, você poderia me ajudar?
Olá Thifany,
A Nione Cristina Claudino parou de colaborar conosco e, infelizmente, não temos outra colunista morando no país.
Obrigada,
Edição BPM