Um artigo que tenha a pretensão de abordar temáticas como essa deve ser escrito com muita cautela. Isso porque ao mesmo tempo que ele é construído com base em experiências pessoais, sua existência parte de uma premissa universal (ou que ao menos deveria ser) que é: o racismo existe.
Falar sobre a experiência de ser negra em outro país é sempre algo muito delicado. Espero que, ao compartilhar minhas impressões, possa ajudar outras mulheres negras que tenham o desejo de imigrar e possam estar receosas.
Todos sabemos que Portugal guarda na sua história a mancha da escravidão. O país exerceu papel central no tráfico transatlântico africano e na cruel divisão do continente em colônias. Foi ele o responsável por levar os negros africanos para o Brasil a fim de servirem de mão-de-obra escrava.
Também é fácil de se imaginar que as nódoas da escravidão não deixam de existir de um instante para o outro. Elas estão refletidas nas desigualdades raciais e no racismo muitas vezes velado. Isso ocorre na sociedade brasileira, e não seria diferente na sociedade portuguesa.
Os problemas relatados por negros em Portugal, na verdade, assemelham-se àqueles que ocorrem em território brasileiro, com histórias de discriminação no ambiente de trabalho, preferência dos senhorios por inquilinos brancos e atitude mais dura da justiça em relação aos negros.
Ambos países também enfrentam o problema de renegar seu passado escravocrata, o que faz com que o racismo intrínseco da sociedade se revele em uma negação de si mesmo. Esses são problemas que se refletem na forma como tais sociedades estão organizadas e é importante ter consciência disso.
No entanto, quero também relatar minha experiência pessoal enquanto mulher negra brasileira em Lisboa. Tendo me mudado para Portugal da Irlanda, estava desacostumada a ver muitos negros no mesmo ambiente que eu, simplesmente porque a imigração negra para a Irlanda é coisa nova. Isso não quer dizer que não existam negros irlandeses ou negros na Irlanda: eles existem, mas são poucos em uma sociedade predominantemente branca.
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O que me chamou a atenção em Lisboa, portanto, foi exatamente a presença de negros em diversos locais, sendo eles provenientes de países diferentes, em grande parte das ex-colônias portuguesas. É importante ressaltar que países como Moçambique e Angola se tornaram independentes de Portugal recentemente, mais precisamente no ano de 1975. Guiné-Bissau teve sua independência declarada em 1973.
Durante o movimento de independência das ex-colônias houve uma imigração dessas populações para Portugal. Os filhos desses imigrantes formam a primeira geração de portugueses negros.
A principal diferença que me faz avaliar minha experiência portuguesa como positiva mora em uma palavra: representatividade. Sendo eu de uma família de classe média, sempre estudei em escola particular, e mesmo depois, ao estudar em um curso de humanas na universidade pública, sempre estive acostumada a sermos em poucos negros em uma sala de aula, nos corredores e no centro de práticas esportivas.
Me espantei no meu primeiro dia de aula do mestrado em Lisboa ao ver a quantidade de mulheres negras na universidade, longe de ser a ideal, mas com certeza muito mais do que jamais havia visto em minha vida. E, mais do que isso, me fez feliz como essas mulheres estavam integradas na população universitária, fazendo parte de grupos de amigos de diferentes etnias. Isso significa dizer que o que me chamou a atenção, para além da presença de negros e negras na universidade foi a ausência da segregação dos mesmos.
Acredito que o grande trunfo de Portugal, mais especificamente de Lisboa, onde resido, está exatamente no fato da presença dos negros não ser contrastante. Vê-se pessoas negras de países diversos e idades variadas em muitos locais da cidade, sendo integrados à sociedade em vez de marginalizados. Essa integração dá-se não somente pela presença de negros em espaços diversos.
Não digo que a marginalização não exista. Ela se faz presente e é consequência de um passado que ainda é negado por alguns. Mas, ao mesmo tempo, a integração também se faz forte na sociedade portuguesa. É preciso ressaltar, entretanto, que essa integração é menos presente no ambiente corporativo, principalmente no que tange às empresas multinacionais, onde continua a predominar uma maioria branca.
Desde que me mudei para Portugal, há um ano e meio, nunca sofri nenhum episódio de racismo. Nunca fui seguida em supermercados pelo segurança. Nunca me senti acuada ao entrar em uma loja, tendo pressa em demonstrar minha intenção em comprar algo para que as vendedoras não me olhassem estranho. Ninguém nunca atravessou a rua ao me ver de longe, ou segurou a bolsa mais apertado quando sentei ao lado da pessoa no ônibus.
Me sinto segura ao andar nas ruas, mesmo durante a noite. Me sinto feliz ao entrar em restaurantes e ver que os negros se fazem presente não apenas como trabalhadores, mas também como consumidores. Me sinto acolhida ao entrar no metrô ou no restaurante universitário e ver a quantidade de mulheres negras de biótipos e idades diversas que aproveitam o espaço público.
Acredito também que tal situação seja possível em Portugal não somente devido à presença de africanos e afrodescendentes provenientes das ex-colônias, mas também pela força do movimento negro. Destaco aqui a atuação da Femafro, associação que tem como foco a defesa dos direitos das mulheres negras africanas e afrodescendentes.
Assim como muitos outros países ao redor do mundo, Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer no que tange à promoção de uma sociedade mais igualitária.
No entanto, acredito que seja importante ressaltar para mulheres negras brasileiras que estão pensando em imigrar que, na atual configuração de ambos os países, no que se refere à política e organização da sociedade, Portugal é uma ótima opção.
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É importante ressaltar também que os índices de violência contra a mulher gerados pelo Instituto Europeu de Igualdade de Gênero colocam Portugal como um dos países europeus menos afetados pela violência contra as mulheres.
Os índices gerais de segurança também colocam o país como um dos mais seguros do continente.
A principal intenção desse artigo é, ao relatar minhas experiências enquanto mulher negra em Portugal, encorajar outras mulheres que desejam imigrar, mas sentem-se receosas por conta do medo do racismo.
Embora ainda haja muito que deva ser feito em relação ao respeito às diversidades e integração das minorias, ressalto que Lisboa é uma cidade multicultural e receptiva que parece estar cada vez mais aberta a pessoas de lugares e culturas diferentes.
9 Comments
Lida!!! Parabéns pelo seu comentário. Pelas suas palavras percebe-se o quanto és guerreira e simpática. Sucesso e tudo de melhor na vida.
Muito obrigada, fiquei muito feliz com seu comentário! <3
Lisboa é uma capital. Saindo desse centro a situação é bem diferente, não só em relação aos negros mas também aos brasileiros.
Sim, claro.
Por isso que tomei o cuidado de especificar, ao longo do texto, que estava relatando a minha experiência em Lisboa, com foco principal na questão de ser negra.
Oi Carol,amei seu artigo,sou negra casada com uma pessoa branca nos amamos muito, ele tem dupla nacionalidade mãe Brasileira e pai português, minha sogra foi morar em Portugal em outra cidade e nos quer morando aí só que meu medo é só o racismo, pq já tem a questão de sermos brasileiros, tenho muito medo essa é a vdd, mais lendo seu artigo me encorajou,eu quase todo dia venho ler ele, vou falar com minha sogra para irmos morar em Lisboa,obrigada por ajudar mulheres e até homens negros tbm. Um grande beijo, quem sabe quando estiver aí nos encontraremos por Lisboa.
E aí, se mudou?
Gostaria de saber se sim como está sendo.
Estive em Lisboa neste ano e pude comprovar essa integração à sociedade das pessoas de etnia, lugares e culturas diferentes.
Fico contente com seu artigo. Tb sou paulistana a viver em Lisboa, mãe branca de um menino mestiço, de pai negro guineense. E uma das grandes preocupações como mãe, além daquelas comuns que todas têm, é como lidar com o racismo e ensinar meu filho a lidar com ele. Tb sempre tive essa sensação de Lisboa, que aqui a integração da população negra numa sociedade majoritariamente branca é muito maior que em SP, p exemplo. Embora a adolescência seja um monstro que eu, como mãe, vá enfrentar mais à frente, espero que caminhemos até lá para um sociedade ainda mais lúcida e igualitária.
Que bom!Deve haver banheiros nas ruas de Portugal né linda?Porque Brigitte Bardot foi considerada racista por defender sua pátria de alguns africanos que migravam,e defecavam nas ruas de Páris.Salve Portugal!