Quando mudei-me pra Genebra, sabia que não seria por muito tempo, o que me incomodava em muitos sentidos.
Eu chegaria em dezembro, e as aulas lá já teriam começado (o ano letivo começa em setembro). Chegaria no auge das festas de fim de ano, em um lugar novo, com novas pessoas e sem tempo hábil para criar vínculos profundos até o Natal. Com exceção de alguns poucos amigos meus e do meu marido, a maioria das pessoas era de meros conhecidos de ambiente de trabalho.
Eu já me mudava bem desgastada emocionalmente. Nos últimos anos o termo nômade passou dos limites para mim. Cheguei a me mudar de país, três vezes em um único ano.
Isso para uma pessoa sozinha já provoca um desgaste sem medidas, mas com uma filha, é muito mais difícil. Não há tempo suficiente para desenvolver um único projeto que seja. Você gasta o tempo da sua chegada, buscando fazer a mudança a menos traumática para os filhos, e quando as coisas começam a se ajeitar, já está na hora de partir.
Foi muito difícil viver esse período, porque eu era extremamente ativa, com uma vivência profissional significativa, e experiências afetivas para lá de satisfatórias e de repente vi meus dias se resumirem a montar e desmontar casas, a construir e abandonar relações, a adaptar a vida da família sem ter muito tempo ou fôlego para construir a minha própria. Sim, porque apesar das pessoas se esquecerem, além de mães e esposas, somos também indivíduos com sonhos e anseios próprios.
Nos últimos três anos tive que esquecer um pouco disso. No Brasil a vida para quem atuava nas áreas de direitos humanos e mobilização social ficou cada vez mais difícil. O jeito foi voltar para a seara internacional.
Foram muitas consultorias e contratos curtos, até reencontrarmos a estabilidade de uma posição permanente de volta à ONU. O posto de Genebra era intermediário. Poderíamos ficar ali por bastante tempo, mas meu coração dizia que aquilo era só um trampolim para o local definitivo.
Com todas essas coisas atormentando minha cabeça e coração, já cheguei em Genebra bem fechada para tudo. Eu não teria tempo para fazer um curso completo (e depois de ter que abandonar o doutorado meses antes de sua conclusão, por causa de uma mudança repentina, fiquei traumatizada) e não queria correr o risco de iniciar algo que não terminasse.
Como se não bastasse, eu que sou rata de praia, cheguei em Genebra em um dos dias mais frios do ano. Estranhei a temperatura, o fato de tudo fechar muito cedo por causa da neve e as pessoas não interagirem umas com as outras.
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Não que fosse impossível pra mim construir alguma coisa por ali, mas seria no mínimo trabalhoso, e honestamente? Eu estava com muita preguiça. Não me sentia animada em construir tudo para desmanchar alguns meses depois. Fui me tornando seca e distante, e depois de algum tempo, um pouco cínica.
Quando as vizinhas se encontravam na varanda no fim do dia para conversar, eu me fazia de ocupada. Não ia nas festinhas ou atividades, nem fiz meus tradicionais encontros para acolher e festejar com brasileiros, não fiz turismo.
Tranquei a mente e o coração. Aliás fiz questão de guardá-lo embaladinho dentro da geladeira. Melhor não trazê-lo para o convívio humano. Isso geraria apego, e para que? Um coração indiferente sofreria muito menos.
E foi assim que fui me recusando a compartilhar experiências, e conhecer pessoas. Ia da escola da Khadija para casa e vice-versa.
Tive algumas oportunidades. Podia ter estudado francês, me envolvido mais com o grupo brasileiro de Direitos Humanos e Resistência. Podia ter inventado algum curso curto, aula de dança, qualquer coisa mas fui evitando tudo. Cheguei a entrar em um grupo de WhatsApp de brasileiras em Genebra, mas não passamos de alguns poucos encontros. Podia ter me doado, feito mais, mas não!
Depois por conta das dores, causadas por minha condição autoimune e agravadas pela baixa temperatura, eu decidi fazer yoga com uma brasileira mega fofa que estava levando o método De Rose para lá (assunto para uma próxima postagem). Através dela, os nomes impessoais que apenas apareciam na tela de celular, começaram a tomar forma e corpo. Isso mudou tudo.
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O yoga foi ajudando a fortalecer meu corpo e alma e começou a quebrar minhas defesas deixando uma energia de afeto fluir pelo meu ser. Além disso, a cada menina nova que eu conhecia, era como se um desejo de amizade voltasse a pulsar em mim.
Não adiantaram as tentativas de me transformar em uma pessoa que não se importava com as outras, o carinho e a vontade de estabelecer laços, foram superiores. Lá estava eu encantada pelas novas amigas, envolvida com suas histórias e com vontade de construir coisas junto com elas. Então foi em meio a esse “re-despertar” que veio a notícia tão temida. Partiríamos de novo!
Foi uma angústia imaginar que agora eu teria tão pouco tempo para conviver com as “meninas”, conhecer a cidade direito e experimentar coisas novas.
Eu bem que tentei correr atrás do tempo perdido. Saí, fiz pequenas viagens de trem, explorei restaurantes e botecos deliciosos.
O frio passou a ser um detalhe. Eu finalmente conseguia andar bem pela cidade, mas eu lutava contra o relógio.
Por fim, todo meu esforço não me impediu de criar laços afetivos, nem de acabar me apaixonando pela cidade que eu tanto rejeitava. Minha “rabujice” não me impediu de ser cativada por Genebra e por tantas pessoas queridas que encontrei ali. A única coisa que minha resistência me fez, foi perder tempo.
Afinal aprendi que somos o que somos e que nada pode mudar isso. Nem nosso próprio esforço em sabotar as lições que a vida nos traz. Passei quase um ano inteiro fugindo do afeto e do prazer de viver na Suíça, com medo de sofrer na partida, mas sofrer nas despedidas é inevitável.
Já dizia o Pequeno Príncipe: “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar…” Fechar meu coração por tanto tempo não me impediu de sofrer, só me impediu de viver melhor e cultivar uma mala de lembranças que me acalentassem a alma.
No final, parti carregando uma pequena pochete de recordações. Não foram muitas, mas foram especiais. As vizinhas amorosas, as crianças entupindo a casa, as amigas “brindando cerveja como se fosse champagne”, as aulas incríveis de yoga, o passeio de trem até os alpes para visitar um Papai Noel suíço.
Foram poucas, mas felizes lembranças.
De nada adiantou prevenir meu coração de se apegar. Ele partiu carregando cada momento, cada pessoa, cada sabor.
Evitar experiencias felizes por medo de perdê-las, é uma idiotice. Não seja essa pessoa!
Como se diz por aí, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.
Acabei trazendo na bagagem muita coisa boa. Podia ter trazido mais, mas espero que a vida me dê outras chances e que eu ainda possa vir muitas vezes a Genebra para ver meus amores, comer fondue e raclette, fazer topless no Paquis, nadar com os cisnes e pular na neve.
Pois é Genebra, você pode não ter sido amor à primeira vista, mas acabou se tornando um grande amor!