Coronavírus em Myanmar.
É primavera, e ainda não vi uma única flor. Também não vi as folhas douradas formando um tapete no chão da rua no outono. São meses de confinamento e o cansaço esbarra no tédio, que cutuca a incerteza e que me enche de uma vontade incontrolável de botar os pés na rua, subir descalça as escadarias da Shwedagon Pagoda.
A primeira vez que ouvi falar sobre a Covid-19 nem parecia que seria algo tão sério.
Como disse John Lennon, a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos. E eram tantos…
Falava-se em uma nova epidemia, mas eu já havia passado por tantas: SARS, gripe aviária, gripe suína, H1N1, eu imaginava que seria apenas mais uma vivência igual as outras.
O começo da pandemia: ficar ou fugir?
Meu marido é funcionário da ONU. Trabalha na Organização Mundial da Saúde e há cerca de quinze anos viajamos pelo mundo afora para enfrentar (e afrontar) a epidemia de HIV/Aids no mundo. Eu atuo com Educomunicação e mobilização social, principalmente nas áreas de saúde, direitos humanos e gênero. Viemos para ajudar a “desbancar” uma epidemia, agora estamos “peitando” outra.
Ouvimos falar da Covid-19 logo após o primeiro caso em Wuhan. Myanmar faz fronteira com a China, então a notícia chegou rápido, aqui. O governo local fechou rapidamente as fronteiras e adotou o distanciamento social de imediato. Logo na sequência, o comércio e as escolas fecharam e escritórios adotaram homeoffice.
Myanmar é um país pobre, com um sistema de saúde precário. Até a Covid-19, o caminho mais curto para tratar uma gripe forte, fratura ou até um tratamento dentário mais complexo era o aeroporto, em um voo direcionado a Bangkok ou Singapura.
O primeiro inimigo da comunidade expatriada foi o pânico, e com ele uma dúvida brutal: ficar ou fugir?
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Muitos estrangeiros saíram daqui às pressas rumo a seus países de origem, ou a próximos com maior infraestrutura. Assistimos “de camarote” a epidemia crescendo a passos largos ao nosso redor. Potências mundiais se ajoelhando diante do inominável caos.
Esperávamos o pior para Myanmar, mas o primeiro caso só chegou aqui no final de março (já estávamos trancados desde meados de fevereiro). Para além do medo da epidemia em si, convivíamos o tempo todo com boatos sobre possíveis insurreições, fome, violência e carestia, em função do fechamento das fronteiras e do lockdown, que por fim veio, severo e peremptório.
Com ele chegou o toque de recolher. A maioria dos estrangeiros esperava o pior de um país sem infraestrutura, com baixíssimo nível de escolaridade, fome e pobreza extremas, mas para a nossa surpresa, Myanmar deu lições inesquecíveis de solidariedade e envergadura.
Lições de união e solidariedade em Myanmar
Os governantes levaram o problema a sério e agiram de forma assertiva. O povo apoiou as medidas de saúde públicas impetradas, apesar do impacto econômico que causaram. A população como um todo se deu as mãos e fez com que a resposta à epidemia em Myanmar fosse uma das mais relevantes na região. Ah, Myanmar! Que incrível foi você.
Foi incrível caminhar pelas ruas do “centro-velho” e ver que “alguém” instalou centenas de torneiras com sabão líquido ao longo da avenida para que pessoas em situação de rua pudessem se higienizar minimamente (não sabemos quem foi, porque foi uma ação de pessoas com posse o suficiente para fazê-lo, mas que não atraíram os holofotes para si).
Foi lindo ver os monastérios e templos abrirem seus portões para as populações em situação de pobreza extrema, pessoas em situação de rua, ambulantes e pedintes. Está sendo emocionante ver que as pessoas – estrangeiras ou locais – estão fazendo de tudo para que ninguém ficasse para trás, aliás, eu ousaria dizer que Myanmar levou a frase: Ninguém solta a mão de ninguém, a um outro nível.
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Apenas para exemplificar, uma comunidade rural que fazia comércio com a China e se beneficiava das plantações de melancia começou a ruir por conta do fechamento das fronteiras. Alguns restaurantes locais e influenciadores, com o apoio de estrangeiros, desenvolveram um gin de melancia (também apoiando uma outra comunidade paupérrima cuja atividade foi impactada pela pandemia).
Com a iniciativa, recuperou-se a comunidade que precisava vender a melancia; a outra comunidade, cuja fonte de renda secou e passou a viver da produção do gin, os restaurantes venderam o gin online e lucraram; e nós, que compramos, nos beneficiamos da leve embriaguez do álcool e do não etílico “embebedamento” da alma, comprazida de fazer parte de uma rede de pessoas que se importa umas com as outras.
Ações solidárias e a segunda onda
Não há um único dia em que eu entre nas redes sociais e não veja alguma ação solidária promovida por algum coletivo, empreendimento, comércio, escola, ONG ou grupo religioso. De restaurantes que preparam quentinhas para distribuir nos monastérios e centros de quarentena a coleta de absorventes femininos para mulheres em isolamento. Muito se tem feito por aqui.
Durante cerca de seis meses de confinamento atingimos um número considerado irrisório do ponto de vista da saúde pública. Cerca de 350 pessoas infectadas e menos de vinte mortes. Um trabalho de saúde pública e cooperação comunitária invejável, com resultados surpreendentes.
A segunda onda chegou violenta. Finalmente estamos sentindo na pele o que, até então, só ouvíamos falar. De 350 infectados em seis meses, passamos a mais de mil infectados por dia. Apesar disso, os números seguem estáveis e os níveis de mortalidade estão obedecendo uma média considerada sob controle do ponto de vista da epidemiologia.
Myanmar é um país perfeito?
Myanmar é um país perfeito? Longe disso! Há sérios conflitos étnicos, problemas políticos, intolerância religiosa e denúncias de violações aos direitos humanos, mas mesmo com todos os seus problemas e vulnerabilidades, eu escolho falar de sua força, amor e seu espírito pueril.
Para enxergar além do óbvio, é preciso “olhar com olhos de ver”, me ensinou um professor de jornalismo. Ele se referia a enxergarmos a notícia, mas o exercício vale para outras coisas também.
Tempos desesperados requerem fé desmesurada.
A provação está longe de acabar. Sabemos que para superá-la precisaremos seguir solidários e comprometidos com a ciência e o amor. Fácil não está. Confinados há dez meses, aeroportos fechados, serviços suspensos, sem previsão de voltar para casa, tomar es campur ou ostentar uma sampaguita no pescoço.
Ainda assim, agradeço todos os dias por vivenciar esse momento de tanta dor nesta terra dourada de sorrisos fáceis, onde amizades se estreitam, parcerias se realizam e o pôr do sol é um dos mais lindos do mundo.