Todos os povos escandinavos apoderam-se da herança viking com ufanismo, um mais do que o outro; curioso que países tão civilizados admirem os ancestrais bárbaros que saqueavam, estupravam e matavam a torto e a direito – tudo bem que, até que foram bons navegadores, inclusive os primeiros a chegar à América, e tinham grande senso estético, mas disso eu falo em outro texto… Já tive o prazer de visitar museus arqueológicos na Suécia, Dinamarca e Noruega e o apelo é claro: desde as exposições históricas sérias aos souvenires de bonequinhos barbudos ou elmos com chifres – que, aliás, nem eram usados como adorno e supostamente são uma invenção de Richard Wagner, para uma encenação do “Anel do Nibelungo” – tudo transpira orgulho viking nesses lugares. Nesse texto vou falar sobre o festival de inverno Thorramatur.
E da minha experiência nórdica de muitos anos – vários amigos nativos desses países, convivência com suas famílias e tradições –, posso dizer que, de tudo que já vi e vivi, o povo que mais me parece ter essa “essência” viking é o islandês. Ah, é porque você mora aí, vocês dirão, caros leitores. Não, não é só por isso, e não me interpretem mal agora: é porque eles mantém algo primitivo ainda. Primitivo, sim, mas num bom sentido, explico: islandeses, como os cavalos e o gado ovino daqui, aguentam qualquer tempestade, comem de tudo, acampam em todas as estações do ano, com lama e chuva, usam pele sem culpa e com naturalidade – até existem alguns veganos e defensores de animais, mas grande parte da população aqui possui pelo menos uma peça no seu vestuário que tem um pedaço de pele de foca, raposa ou de outros bichos “quentinhos”.
E assim também é com cheiros: o de enxofre faz parte das nossas vidas nesta ilha vulcânica (a água quente das torneiras tem um cheiro de ovo passado), e o de peixe também. Imaginem um país inteiro cheirando a peixe podre e ninguém se importa, a maioria adora, inclusive. É o que acontece na antevéspera de Natal, 23 de dezembro, quando se come o “skata”, um parente do tubarão que passa por um processo de putrefação e é cozido em água, servido com pão de centeio e batatas.
Entendem agora o que quero dizer com primitivo? É não ser mimado quando se trata do essencial para viver (é não ter, digamos, algumas frescurinhas…). As comidas “estranhas” (isto é uma questão de ponto de vista) não param por aí: baleia, cavalo e cabeça de ovelha também são bem normais aqui pertinho do círculo polar Ártico, apesar de não fazerem mais parte da dieta diária do “islandês-padrão”. Em dias especiais, entretanto, como no do Þorrablót (ou Thorrablot; na língua nórdica antiga, “Þorri”/Thorri significava congelamento ou inverno, propriamente dito e “blót”, sacrifício para os deuses), a tal essência viking fica à flor da pele e os islandeses comem de tudo. Essa é a comemoração do mês Þorri, o quarto mês do inverno no calendário nórdico antigo (falei sobre isso aqui), que compreendia o meio de janeiro ao meio de fevereiro.
A festa ficou mais popular nos anos 1950 e 60, quando as famílias se reuniam, e cada um levava uma iguaria típica da culinária tradicional, como picles de testículos de carneiro, barbatana de foca em conserva ou a famosa cabeça de ovelha, geralmente com os olhos. Tubarão fermentado (para não dizer podre) também não podia faltar, acompanhado do famoso “Brennivín”, uma aguardente de batata, aromatizada com cominho. Atenção: Tubarão podre sem um copinho de Brennivín do lado não é degustável, eu aviso!
Nos dias de hoje, o Þorrablót é comemorado até nas escolas e creches. Do meio para o fim de janeiro, todo mundo se prepara, os restaurantes servem menus especiais, as empresas e repartições públicas organizam refeições de confraternização em suas cantinas com esses pratos, e todos os supermercados fazem promoções irresistíveis para você levar a sua própria cabeça de ovelha. Serve-se uma para cada convidado, diga-se de passagem. Minhas filhas ficam pedindo para eu comprar e querem repetir o almoço da escola em casa, e eu, apesar de ser adepta do “em Roma, faça como os romanos”, ainda não consegui me render e proporcionar a elas esse momento viking na intimidade, vejam a foto e entendam por quê.
Agora, sem preconceitos, façamos uma análise objetiva dessa tradição: esta é uma ilha a poucos graus do Polo Norte (longitude: 64,9631°N), onde nunca faz calor, e cujo clima dispensa comentários. Aqui, em se plantando, (quase) nada dá! Dá em estufa, e naqueles dias em que só os bravos e fortes sobreviviam, não havia estufas. O inverno aqui dura, hoje em dia, com todo o aquecimento global, 10 meses, mais ou menos. Então, imaginem o que comer na época de Erik, o vermelho? Os alimentos tinham que ser conservados durante essa tenebrosa e longa estação e, para tal, eram colocados em “marinada” (que não era nenhuma “vinha-d’alhos”, não), ou salgados (aqui há o melhor bacalhau do mundo!) ou defumados, daí essa preparação tão simples e ingredientes tão esdrúxulos. Pessoalmente, acho que foram até muito criativos, dada a escassez de temperos e as condições de armazenamento.
No Þorramatur, festejamos que a metade do inverno já passou. Como os outros escandinavos, o islandês é bem otimista e acostumou-se a ver o copo meio cheio. Então, é festejar que o dia já não tem mais só quatro horas de luz e olhar para a frente, contar só mais dois meses, que o verão chega em abril. O tempo de claridade é maior, exatamente 6 minutos a cada dia. E, com sorte, estará menos frio, porque a luz abundará até que o inverno chegue, de mansinho e se instale rapidamente, a cada 6 minutos por dia, de novo.
4 Comments
Cada vez mais me encanto pela Islândia. Erika você conhece algum curso em livros, de Islandês para brasileiros? Obrigado
Olá!
Obrigada por ler e comentar, a Islândia é mesmo encantadora!
Não conheço livros específicos só para brasileiros, existem alguns cursos online da Universidade da Islândia e alguns livros em inglês com métodos diversos, alguns para auto-didatas.
Neste link, você pode ver alguns desses cursos.
Boa sorte!
Oi Erika, parabéns pelo texto! Estou indo com um grupo de amigos para a Islândia na primeira semana de janeiro e estávamos afim de alugar um carro e fazer a costa sul. Tenho três perguntas para você, considerando as poucas horas de luz solar, você acha viável se aventurar pelo interior ou seria melhor ficar na capital, onde haveria um turismo noturno mais atraente? É uma boa época para ver a aurora, em qual região seria melhor tentar? Por fim, qual a média de temperatura nessa época? Se puder me ajudar esclarecendo esses pontos eu agradeço.
Olá, Cristiane,
obrigada por ler e comentar, fico feliz que gostou.
Em janeiro já temos bem mais luz e já começa a escurecer somente lá pelas 17:00 horas. Amanhece lá pelas 10:30, mas, em dias de tempo bom, o céu já fica claro cedo, às 9:30, mais ou menos.
Não há garantia de ver aurora, nem de tempo bom. Se não houver tempestades, podem viajar tranquilos pela estrada, sim. Entretanto, venham preparados para dirigir no gelo, se for necessário, em janeiro sempre há neve ou gelo nas estradas.
A aurora boreal aparece com céu limpo, é só torcer para vocês não terem nuvens, então é só torcer para o tempo ajudar. Ela não tem lugar certo para aparecer, às vezes dá para ver no meio da cidade, às vezes, tem que se sair para um lugar escuro, sem poluição das luzes artificiais.
Quanto a ficar na cidade e aproveitar a noite, vocês também podem fazer isso: sair durante o dia para conhecer os outros lugares e voltar para dormir m Reykjavik.
A temperatura média no inverno inteiro é um pouco abaixo de zero, mas, com vento, a sensação térmica é siberiana. Tragam muitas roupas quentinhas e impermeáveis, isso é o mais importante.
Boa sorte nos seus planos e com o tempo! Boa viagem!