Kessia Cericola, advogada e intérprete judicial nos EUA.
Paula, autora aqui do BPM, teve o prazer de entrevistar Kessia C. Cericola, uma brasileira que é advogada no Brasil e nos EUA, e intérprete (português-inglês) qualificada pela Suprema Corte do Estado de Ohio (EUA) – só existem duas pessoas que obtiveram tal qualificação, e Kessia é uma delas.
Além disso, Kessia é membro do quadro de diretores da organização Cidades Irmãs de Grande Columbus, e ajudou a fundar o Comitê das Cidades Irmãs Columbus-Curitiba. Kessia também é fundadora da ONG Alive in my Heart (“Vivo no meu coração”), que presta assistência a famílias que sofreram perda gestacional ou neonatal.
BPM – Onde você nasceu e como foi a sua infância e tempo no Brasil, Kessia?
KCC – Nasci em São Bernardo do Campo, estado de São Paulo. Minha mãe é chilena e meu pai é brasileiro. Eles sempre foram muito engajados com a igreja e com ações de caridade, resgatando homens de rua e ajudando na reabilitação de pessoas viciadas em drogas. Quando a ONG deles cresceu muito, nos mudamos para Mauá, e lá ficamos até eu entrar para a faculdade. Hoje eles ajudam famílias carentes no mesmo bairro em que cresci. Cursei direito na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Sempre fui obcecada pela língua inglesa, e comecei a estudá-la aos 10 anos, quando ganhei uma bolsa de estudos em um sorteio de curso de inglês. Comecei a trabalhar como intérprete com 15 anos. Foi assim que conheci um casal de americanos que seriam meus futuros sogros: eles vieram em missão para o Brasil e minha família nos conectou para que eu os ajudasse na comunicação. Alguns anos mais tarde o filho deles foi também ao Brasil, e o conheci. Namoramos à distância por 3 anos enquanto eu fazia faculdade e estágio em empresas. Aos meus 24 anos, nos casamos e vim para Columbus, em Ohio.
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BPM – Foi difícil a sua adaptação inicial? Como conseguiu exercer a advocacia e ser intérprete judicial qualificada nos Estados Unidos?
KCC – Bastante. Cheguei sem conhecer ninguém a não ser meu marido e seus pais, sem trabalhar, e pouco familiarizada com a cultura. Sou uma pessoa introvertida e sempre tive um mesmo círculo de amigos. Sofri muito neste período, mas ele serviu para “quebrar minha casca”, pois percebi que, para viver bem, precisaria fazer novos amigos e construir minha rede social. Comecei a buscar conhecer pessoas, e também me conectar à comunidade brasileira em Columbus. Decidi também que queria atuar como advogada nos EUA. Contudo, era muito difícil, já que os estudantes americanos fazem primeiro faculdade (de 4 anos) antes de cursarem direito (mais 3 anos). Além disso, há um exame especial para poder ingressar no curso de direito. Minha estratégia foi cursar o programa de mestrado em direito da Universidade do Estado de Ohio – fui a primeira brasileira a ser aceita no programa. Depois disso, precisava fazer o exame BAR (equivalente ao exame da OAB no Brasil), mas em Ohio há uma pré-seleção de quem pode prestar a prova. Como eu somava 6 anos acadêmicos em direito (5 da faculdade e 1 do mestrado), eles me pediram que eu fizesse mais um ano de estudos com 30 créditos. Consegui fazer aulas da graduação em uma faculdade local e somei os 7 anos, sendo autorizada a prestar a prova. Passei e pude começar a exercer a advocacia independentemente. Para ser intérprete judicial no Estado de Ohio, há uma prova escrita de inglês seguida de prova oral muito difíceis. Na primeira vez, não passei na prova escrita; na segunda vez, não passei na prova oral. Mas na segunda tentativa da prova oral, obtive pontuação suficiente para obter meu registro de intérprete qualificada. Ainda vou prestar a prova novamente para passar a ser intérprete certificada! Quando eu decido que quero alguma coisa, tento até conseguir (risos).
BPM – E como conseguiu ser membra do quadro de diretores da Cidades Irmãs de Grande Columbus?
KCC – Depois que passei no BAR, fui indicada para liderar o Comitê de Direito Internacional do Columbus Bar Association, que é como a OAB local. Através do Comitê, busquei me conectar com o mundo de negócios e a comunidade internacional da cidade. Um dia, descobri que fazia poucos meses que o prefeito de Columbus estivera em Curitiba para firmar o acordo de cidades irmãs. A organização Cidades Irmãs foi fundada a nível nacional nos anos 50 pelo então presidente dos Estados Unidos Eisenhower, que teve a visão de que, se os cidadãos americanos se conectassem com cidadãos de diferentes cidades do mundo, evitaríamos guerras mais efetivamente. Achei a ideia muito bacana e contatei a organização local para voluntariar. Participei de uma viagem para Curitiba e, quando voltamos para Columbus, trabalhamos para estruturar um comitê do Brasil. Nos últimos anos organizarmos diversas ações – como a troca de artistas e maratonistas entre as cidades e eventos em colaboração com a Universidade do Estado de Ohio. Com o tempo, fui desenvolvendo relações com as pessoas, construindo uma reputação como cidadã comprometida com o exercício da cidadania e como advogada. No começo de 2018, fui convidada para ser membra do quadro de diretores da organização.
BPM – Você pode compartilhar com a gente um pouco sobre a sua organização Alive in my Heart?
KCC – Em 2016 perdi minha filha Annelise 3 dias após seu nascimento. Ela tinha um problema congênito e 80% de chances de sobreviver. No entanto, como nasceu prematura, não conseguiu sobreviver ao tratamento. Fiquei profundamente abalada. Sofri com depressão e estresse pós-traumático. O apoio da minha família, amigos (inclusive da comunidade brasileira que me abraçou de uma forma muito especial) e terapia me ajudaram a me recuperar da parte inicial do luto, que é muito dolorida. Neste período, pesquisei muito sobre o luto materno e mortalidade infantil. Descobri que o Condado de Franklin, onde Columbus está localizada, tem uma das maiores taxas de mortalidade de crianças com menos de 1 ano dos Estados Unidos. Descobri também que a grande maioria das perdas acontecem em famílias pobres que não têm acesso à comida, serviços de saúde, etc. Fiquei muito revoltada com esta questão, que é de direitos humanos, pensando no horror de passar por isto e ainda não ter recursos para se cuidar, tendo que voltar a trabalhar imediatamente para sustentar a família. Juntamente com duas famílias que também perderam seus bebês, decidimos iniciar esta ONG. A registramos no ano passado e recentemente começamos a arrecadar fundos para um projeto que fornecerá produtos de higiene pessoal, comida e pagamento de um mês de conta de água, luz e gás para famílias carentes que sofreram a perda. Também temos o sonho de pagar um mês de aluguel. Ohio tem um problema grande com o despejo de pessoas, e não posso imaginar passar por esta perda, não ter como receber tratamento médico e psicológico, e ainda ficar sem eletricidade ou ser despejada. Organizamos também encontros de apoio para família – foi muito emocionante o nosso evento de dia das mães -, fazemos parcerias com outras organizações, e mantemos um site com recursos locais.
BPM – Como você enfrentou as dificuldades por ser mulher e estrangeira nos EUA?
KCC – No início foi muito difícil, pois a cultura americana tende a classificar as pessoas em diferentes categorias. Pela primeira vez na vida fui taxada como estrangeira, mulher, metade hispânica e latina, e isso foi assustador no começo. Com o passar dos anos, aprendi a não levar certas coisas, como a competitividade dos estudantes americanos, algumas grosserias ou desinteresse, para o lado pessoal, principalmente porque percebi que todo mundo se tratava assim, independentemente da origem! Algumas pessoas me disseram que eu não conseguiria passar no exame BAR, que eu deveria voltar para o Brasil para ser advogada, mas usei suas palavras como combustível para estudar e trabalhar mais. O maior problema não é o que as pessoas nos falam ou pensam de nós, mas os pensamentos de baixa autoestima que internalizamos. Um dia percebi que essas lutas e pressões internas é que me drenavam. Antigamente eu pensava que ser mulher, baixinha, morena e latina eram desvantagens, mas entendi que “todo o meu pacote”, incluído todas as minhas experiências pessoais e profissionais, me oferece perspectivas únicas que contribuem muito para resolução de problemas e tem muito valor. Com a perda da Annelise, aprendi que precisava me amar tanto quanto amo outras pessoas, e que ser você mesmo é a melhor versão de si que você pode ser.
Kessia, o BPM agradece com muito carinho o seu tempo doado para esta entrevista e o seu trabalho, tanto profissional quanto voluntário. Esperamos que mais pessoas se inspirem em você a fazer algo por um mundo melhor aonde estiverem.
1 Comment
Oi Paula, amei a entrevista!!! A Kessia realmente eh uma inspiração porque ela transformou toda suas perdas e dificuldades em oportunidades e não ficou no plano de auto piedade.
Abraços,
Alessandra