Lembranças do terremoto na Turquia.
Dia 30 de outubro de 2020 parecia mais um dia normal em nossas vidas. Nesse dia eu tinha um compromisso na polícia de imigração às 10h da manhã, precisava apresentar alguns documentos referentes ao meu pedido de cidadania.
Saímos de casa e retornamos por volta das 14h30min. Tomamos banho, almoçamos e sentamos no sofá para comprarmos uma passagem e quando estava quase finalizando esse processo da compra o dia mudou completamente… Nossas vidas mudaram para sempre.
O terremoto na Turquia que abalou minha vida
Não deu tempo de entender o que acontecia, eu só pensava em como me equilibrar e sair dali. Os tremores duraram cerca de 30 segundos, mas para mim pareceu uma eternidade. Ouvia gritos e eram desesperadores.
Nós também gritávamos e sentimos mais que medo, sentimos pavor, e isso estava estampado em nossos rostos. O prédio balançava de um lado para o outro, impossível equilibrar-se.
O chão parecia mole e as paredes ameaçavam desabar. O reboco em nossa sala caiu, armários da cozinha abriram e as coisas caíam e quebravam. Tudo saiu do lugar.
Permanecemos, eu, meu marido, meu enteado e minha cunhada, todos abraçados à coluna central do apartamento na cozinha.
Era um terremoto de magnitude sete, o maior que senti nesse tempo em que vivo na Turquia; e assim que houve uma pausa, saímos correndo do edifício onde vivíamos no quinto andar.
17 prédios desabaram em 30 segundos
Corremos para a praça que fica à frente do conjunto de edifícios onde morávamos e aos poucos fomos compreendendo o que havia acontecido. Centenas de pessoas estavam lá, chorando, gritando, ligando para parentes e amigos, todos desolados como nós.
Muitos descalços ou apenas de meias, como nós.
Já havia sentido outros tremores em Istambul e Izmir, mas jamais nessa proporção. Começamos a caminhar e procurar amigos, vizinhos, conhecidos.
Tristes lembranças
Foi nesse momento que me deparei com uma das lembranças mais tristes que carrego em minha memória, um prédio desabado com dezenas de pessoas debaixo dos escombros e centenas de outras se mobilizando para retirar quem estava ali soterrado.
Impossível esquecer. Eu não conseguia falar, apenas chorar. E logo depois vi outro e mais outro e mais outros. Foi um total de 17 prédios que desabaram durante aqueles 30 segundos de tremor e terror.
E ninguém conseguiu dormir naquela noite. E foi a primeira noite ali, naquela praça, juntamente com outras centenas de pessoas também desabrigadas.
Quem não estava debaixo dos escombros, estava desabrigado. Não era possível voltar para casa como das outras vezes que sentíamos os tremores de menor escala.
No dia seguinte acreditávamos que a volta para o apartamento seria possível, mas não foi o que aconteceu. O prédio estava com risco de desabamento, juntamente com cerca de mais 25 outros prédios.
Foi a noite mais longa e temerosa de toda a minha vida. Após o segundo dia, continuamos na praça, fomos informados que realmente não seria mais possível voltar ao apartamento, pois ele estava interditado e seria demolido.
Uma das coisas que gosto na Turquia é a rapidez com que atendem seus cidadãos em muitos serviços públicos. No dia seguinte, uma equipe vistoriou nosso prédio e todos os outros.
No segundo dia, uma segunda equipe; e no quarto dia veio a resposta concreta, não poderíamos nunca mais entrar no prédio, estava condenado e seria demolido juntamente com mais vinte e quatro prédios.
Desespero, tristeza e aceitação
Num primeiro momento vem o desespero, num segundo momento a tristeza e muito tempo depois a aceitação, isso em meu caso.
Seis dias após o terremoto, a prefeitura permitiu que os moradores do nosso edifício entrassem pela sacada do apartamento através de um caminhão com elevador e retirassem o que era mais importante e não fosse pesado. Conseguimos pegar duas malas de roupas, todos os documentos e alguns pertences essenciais.
Durante quinze dias, todos permaneceram em barracas térmicas, inclusive nós. Chegaram doações de todas as espécies.
Cobertores, roupas, fraldas, absorventes, água, comida, meias, roupas íntimas, isopor para realizar isolamento térmico entre o colchão e o chão, colchão, saco de dormir, barracas, enfim, nada nos faltou.
Foi um momento em que vi o contraste de um país que atende seus cidadãos na primeira hora e segue cuidando.
Recebemos até shampoo para lavar o cabelo a seco, toalhas umedecidas para o banho porque não havia banheiros para todos e nem local para banho. Tomei meu primeiro banho três dias após o terremoto e jamais vou esquecer o quanto isso me marcou.
Sentimento de gratidão
A comida chegava de várias prefeituras diferentes. As cidades corriam para socorrer todos os desabrigados. Recebemos aquecedores a gás e a prefeitura enviou voluntários em nossas barracas para ver o que mais necessitávamos e em pouco tempo voltavam com o item atendendo nossas solicitações.
Contêineres foram instalados com máquinas de lavar, sabão e amaciante foram distribuídos. Tudo que fosse necessário nos foi oferecido pelo governo, algumas instituições e pessoas.
Não posso deixar de mencionar aqui a visita que recebi de brasileiros que saíram de sua casa, em outras cidades, e foram ao meu encontro apenas para me abraçar e estar comigo naquele momento. Fez uma diferença que eles talvez nunca compreendam. Gratidão é o que define esse sentimento.
Lembranças de um resgate emocionante
Em meio a tudo isso, havia os mortos que iam sendo retirados dos escombros e assistíamos a tudo, torcendo para que mais pessoas fossem encontradas o quanto antes e com vida. Mais de 100 pessoas perderam a vida naquele dia.
Algo que nunca se apaga da minha mente é a retirada de uma garotinha de quatro anos, no quarto dia após o terremoto. Estava ao lado de sua avó paterna, segurando sua mão, quando o drone mostrou a pequena Ayda sendo resgatada com vida.
A emoção tomou conta do lugar e nós choramos e sorrimos, nos abraçamos e comemoramos ao mesmo tempo em que sentimos o luto pela mãe que foi retirada sem vida. Ela havia colocado Ayda ao lado da máquina de lavar, isso criou um vácuo permitindo à garotinha um espaço onde permaneceu durante os quatro dias sem água, sem comida e sem luz.
Na noite anterior, os cães farejadores indicaram o local onde ela estava e os bombeiros fizeram as buscas durante toda a noite e ao final da manhã conseguiram encontrá-la.
Foi emocionante! Ela saiu sorrindo e sem grandes ferimentos. A avó pulava e chorava. O pai dela não continha a emoção e a dor. Nunca vou esquecer nem mesmo dos menores detalhes. Não quero esquecer.
Começo das demolições
Após sete dias, as buscas chegavam ao fim em todos os pontos de desabamento. As famílias sentiam o luto e as demolições dos edifícios condenados iniciaram. O nosso prédio foi um dos primeiros a ser demolido. Não sei explicar esse sentimento, essa dor, mas sei que é possível renascer dela.
Após quase vinte dias, as famílias receberam uma ajuda do governo de aproximadamente R$ 8.000,00 para o aluguel de um ano e quem não quis, recebeu um contêiner bem próximo do local onde viviam.
Esse foi o nosso caso. Optamos pelo contêiner porque, de alguma forma, ficaríamos ali, junto com muitos dos nossos vizinhos e amigos.
Atualmente as famílias seguem vivendo nos contêineres e recebendo toda assistência da prefeitura local que visitam semanalmente as famílias. Os contêineres foram equipados com água, luz, gás, aquecedores e internet.
Psicólogos também visitam semanalmente todas as famílias e realizam terapias. Todas as necessidades continuam sendo atendidas.
Vou citar um exemplo: minha cunhada precisava de um colchão ortopédico e informou a um dos funcionários da prefeitura em uma das visitas que recebeu. Dois dias após, o colchão foi entregue conforme pediu.
Há postos do governo, prefeitura e saúde onde os contêineres estão instalados. Ambulâncias 24h no local e espaços de lazer para as crianças.
Outra coisa que o governo tem feito é empregar os desempregados em órgãos públicos, em funções que possam exercer. Nós temos um amigo que trabalhava como zelador em um dos prédios demolidos.
Ele vivia no apartamento do zelador, perdeu o emprego e a casa. Optou pela ajuda financeira para o aluguel e após três meses foi empregado como porteiro em um prédio da prefeitura.
Quanto ao futuro…
Quanto ao que acontecerá no futuro, tudo está sendo resolvido. Claro que levará um tempo, mas percebemos pelo movimento que realmente será resolvido.
Nosso apartamento será construído no mesmo lugar, bem menor do que era antes, porque a prefeitura não fará prédios de oito andares como antes, mas de cinco andares, para que todos possam ficar no mesmo lugar. Quem não aceitar essa opção poderá ir para um apartamento maior, mas em bairros mais distantes.
Não é algo que a gente se programa para viver, simplesmente vive. No começo eu queria esquecer e tinha pesadelos sempre. Meu marido se mexia na cama e eu achava que era a cama balançando com um terremoto. Eu queria apenas esquecer.
Depois, compreendi que esquecer não me ajudaria, mas lembrar sempre me transformaria. E decidi que seria assim. Muitas famílias perderam mais que objetos, roupas, pertences.
Perderam quem mais amavam, alguns a companhia de uma vida inteira ou de alguém que estava começando a vida. Eu não perdi nada, perto disso. Sempre é tempo de recomeçar e nem sempre, para um recomeço, o mais importante é ter uma casa, mas sim uma vida!
1 Comment
Poxa, li a matéria recentemente, e mesmo já fazendo alguns meses fico feliz em ler seu relado de como a situação foi manejada pelas autoridades e os próprios cidadãos ali. Um país o qual sempre tive vontade de conhecer, ou até morar (futuramente quem sabe?), é sempre bom saber que vamos poder contar e confiar naqueles ao nosso redor e aquecer nossos corações com relatos assim.