Liberdade de expressão no Québec.
Se existe um direito que não necessariamente é uma unanimidade nas constituições mundo afora, diria que é o direito de se manifestar publicamente. As coisas não andam fáceis em muitos países e diante da universalização do acesso às informações e imagens praticamente em tempo real, todos os dias ouvimos falar de algum tipo de manifestação a favor ou contra as mais diferentes causas que se possa imaginar. Parece que hoje em dia ninguém mais consegue ficar calado e isso tem seu bônus, mas também seu ônus.
#vemprarua no Brasil
O Brasil é um país em que o direito de manifestar é constitucionalmente garantido, podendo ser realizado em qualquer lugar. Em geral, as principais restrições para o exercício desse direito estão relacionadas com possíveis infrações à segurança e integridade física dos participantes, assim como a outros direitos também constitucionalmente garantidos, como o direito de ir e vir, por exemplo.
Nos últimos anos acompanhamos uma série de manifestações na Terra Brasilis: por saúde, educação, justiça, menos violência, mais segurança, mais emprego, mais transparência no governo, abaixo a corrupção, mais tolerância de gêneros, menos desigualdade, dentre outras bandeiras.
Em muitas situações, o que era para ser um exercício pacífico de democracia descambou para a violência e isso fez todos refletirem sobre até que ponto esse artifício previsto na lei cumpria devidamente sua função, afinal a gente quer viver para contar, acreditando que fez diferença no mundo e não virar destaque de primeira página por conta de uma bala de borracha ou, pior, de verdade.
O fato é que acompanhando (agora à distância) o que se passa no Brasil, achei interessante contar para vocês como são as manifestações que acontecem aqui no Québec. Mesmo morando num país desenvolvido, existem sim causas pelas quais os cidadãos vão às ruas. Fato que a realidade é bem diferente, logo não cabe o julgamento das razões. Isso não diminui em nenhum aspecto a importância da livre expressão. No entanto a dinâmica é bem diferente e talvez até surpreenda alguns, pois a meu ver, as regras são bem rígidas assim como as consequências quando não respeitadas.
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#vemprarua no Québec
Existem vários eventos históricos que justificam os meios adotados atualmente pelas diferentes municipalidades para ter maior controle sobre a realização de manifestações de rua. Não vou entrar nesse mérito hoje, simplesmente descrever o que deve ser feito para que diversas vozes possam se fazer ouvir.
Grosso modo, a liberdade de reunião pacífica, de associação, de opinião e de expressão é garantida pelo artigo 2 da carta canadense de direitos e liberdades. Segundo a Ligue des droits Québec (Liga de Direito – sessão de Québec), a realidade é que essas liberdades são constantemente negligenciadas quando não ridicularizadas. Isso se deve à contribuição de diversos regulamentos municipais, leis e estratégias de intervenção policial que restringem tais liberdades. Eis alguns exemplos de exigências regulamentares:
- Fornecer informações pessoais das pessoas que organizam as manifestações;
- Obrigação de fornecer o itinerário da passeata à polícia;
- Proibido o uso de máscaras;
- Respeito às condições impostas pela polícia;
- Possuir um seguro responsabilidade civil.
Sobre esse último ponto, fiquei intrigada. Nunca tinha ouvido falar desse tipo de seguro, mas ele inclui garantias contra: danos físicos, materiais e imateriais consequentes; danos a bens móveis em instalações temporariamente ocupadas; culpa justificável; poluição e danos ao meio ambiente; apoio jurídico para processar outras instituições que comprometam a integridade do assegurado. Achei isso tudo muito estranho, mas diante das imposições, melhor ter seguro do que pagar do próprio bolso, visto que não tem como organizar tudo sem comprometer o próprio nome.
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Os fatos seguintes foram retirados de um documento publicado pela organização Ligue des droits Québec sobre os mitos e verdades do direito de se manifestar. Faço aqui uma tradução livre.
Mito n.1 – Manifestar não é um direito.
Manifestar é importante porque permite-se que direitos sociais sejam alcançados e universalizados.
Mito n.2 – Manifestar-se para influenciar um governo legitimamente eleito é um ato anti-democrático.
A democracia não deve se reduzir a um voto a cada 4 anos. Ela deve permitir à população de participar do debate público e de expressar seu ponto de vista, incluindo as manifestações.
Mito n.3 – As manifestações deveriam ser ainda mais restringidas pois incomodam, são barulhentas e atrapalham a circulação.
O direito de manifestar não deveria ser limitado por um governo como lhe convém. No Québec, medidas restritivas foram adotadas sem efetivamente comprovar que elas são realmente necessárias para assegurar o respeito a outros direitos humanos.
Mito n.4 – Fornecer o itinerário não é complicado e não impede ninguém de manifestar.
Em certas circunstâncias, determinar o percurso é difícil, às vezes até impossível. Exigir o itinerário impede que determinados eventos ocorram, além de permitir que a polícia tenha o poder de decidir quem vai ou não manifestar.
Mito n.5 – Fornecer o itinerário é essencial para garantir a segurança de quem vai manifestar.
A polícia reconhece que é capaz de fornecer a segurança necessária durante eventos, independentemente de receber o itinerário.
Mito n.6 – Pessoas que portam máscaras durante manifestações tem intenções criminais.
Várias pessoas usam uma máscara ou disfarce para expressar uma mensagem, outros fazem como forma de permanecer anônimo por motivos que não tem nada a ver com a intenção de cometer um crime.
Mito n.7 – Quando a polícia intervém numa manifestação, há sempre uma boa razão para tal.
A polícia intervém diferentemente de uma manifestação para outra. Algumas são mais fortemente reprimidas que outras, quer o itinerário seja divulgado ou não, ou atos criminais tenham sido cometidos.
Será que esse modelo pega no Brasil?
Às vezes, a gente tem a impressão de que no Brasil tudo vira bagunça porque organização não necessariamente está no nosso DNA enquanto sociedade. Por outro lado, restrições colocadas em busca da segurança e respeito de outros direitos humanos podem limitar um dos mais essenciais para o exercício da democracia: a liberdade de expressão. Será que alguns pontos fariam sentido no Brasil? Será que daria certo? Mandem seus comentários, gostaria de conhecer outros pontos de vista.
Mês que vem contarei sobre um evento importante que já tem manifestação popular garantida: G7 Summit. O encontro das 7 maiores potências mundiais (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e EUA) que acontecerá em Charlevoix, próximo à Québec. Clique aqui para mais informações sobre este importante encontro internacional. A última vez, deu B.O falando num português bem claro. Fiquem ligadas!