À primeira vista, a sociedade queniana parece ser bastante liberal e justa com relação às mulheres, se comparada com outros países africanos. Por todos os lados encontramos mulheres profissionais e bem vestidas, educadas e finas, inteligentíssimas e com nível superior, empreendedoras. Infelizmente, conforme vivemos algum tempo no país, vemos que a realidade não é a que aparenta.
Os casamentos à primeira vista parecem bem tradicionais, algo extremamente necessário no Quênia, principalmente para as mulheres. Uma mulher solteira normalmente escuta de seus parentes mais velhos que não terá direito à herança e, geralmente, ela é sim excluída do espólio por não ser casada. Caso esteja em torno de seus 30 anos e ainda não tenha marido e filhos, terá que enfrentar uma pressão familiar fenomenal para manter-se solteira. Isso, quando não são negociadas ou vendidas pelo seu dote, como já falei em textos anteriores, devendo casar-se por conveniência sem ter nada em comum com seus parceiros. Verdadeiras mercadorias vendidas para não serem a vergonha de suas famílias. Com este tipo de comportamento, chegamos a outro tópico deste tema: a poligamia.
A constituição do Quênia aceita a poligamia, ali está escrito que o homem pode ter quantas mulheres ele for capaz de manter, além de definir que “o casamento é uma união voluntária de um homem com uma mulher, não importando se é uma relação polígama ou monogâmica”. A lei entrou em vigor em meados de 2014, mas apenas serviu para formalizar as práticas locais. Na época, a aprovação da lei causou um alvoroço e protestos de membros mulheres do parlamento, mas foi em vão. A poligamia é um fato neste país, apesar de sua ampla maioria cristã.
Um casamento polígamo causa grandes impactos sociais que descreverei logo mais abaixo e a proposta só é válida para homens. Mulheres polígamas nem pensar! Conveniências de quem faz a lei, ponto para a desigualdade entre os gêneros…
As esposas não são mantidas na mesma casa, logo o marido está apenas alguns dias da semana com cada esposa. O fato de o marido ter várias esposas não implica que ele manterá cada casa, ou seja, além de terem que aceitar o marido com várias mulheres, as esposas muitas vezes têm que trabalhar e muito para manter suas casas e prover educação para os filhos.
O alto índice de natalidade também é uma consequência desse tipo de costume, pelo menos aqui no Quênia, os filhos são considerados bênçãos e quanto mais filhos existirem na relação, mais importância terá a esposa na vida daquele homem. Isso, no entanto, não impede o abandono das mulheres com filhos. Como o marido pode casar-se diversas vezes, ele não é obrigado formalizar um divórcio, então, um homem sem muitas condições financeiras de manter dois ou três casamentos, simplesmente abandona a mulher sem dar nenhuma satisfação e casa-se com outra. Isso gera uma legião de mães solteiras, que normalmente foram abandonadas por seus maridos, vivendo nas favelas. Somado ao alto índice de natalidade dito anteriormente, o resultado é uma população imensamente pobre e sem condições de estudo, sobrevivendo de maneira precária nas favelas.
A lei queniana prevê o pagamento de pensão alimentícia para os filhos, mas não prevê a punição no caso de não pagamento, por isso fica bem fácil para um marido que se cansou de sua família simplesmente começar outra. Não existe responsabilidade e a lei da poligamia acabou protegendo e legitimando esse comportamento.
Por outro lado, se a família é rica, a mulher acaba aceitando também o comportamento do marido, com a diferença de que tem uma vida mais confortável e pode prover melhores condições para seus filhos. Mas quando questionadas, muitas sentem-se traídas e magoadas pelo comportamento do marido e também não conseguem sair do casamento de forma tranquila. Como já disse, se ser solteira aqui é algo bastante difícil, imagine ser divorciada. Impossível!
A lei prevê o divórcio, prevê a separação dos bens que foram construídos em conjunto e prevê o pagamento de pensão para os filhos, mas na prática o divórcio inexiste. Como já disse, existem mulheres abandonadas, sem ter nunca um papel assinado e impedidas de casar-se formalmente novamente, isso nas classes mais baixas.
Nas classes mais altas as mulheres não se separam, pois sabem que seus maridos não pagarão as pensões para os filhos uma vez que não há punição. Muitas vezes os maridos de classes altas mantêm as esposas em um regime de semi-cárcere. Cercadas por motoristas, mordomos e empregadas (algo muitíssimo comum nas classes altas) vivem sem poder sair desacompanhadas, em regime de constante vigilância, tudo para manter a aparência de um bom casamento e evitar que esta mulher busque por um advogado ou alguém para ajuda-las a lutar por seus direitos.
Embora o que descrevo pareça muito longe de nossa realidade no Brasil, nem tudo é ruim. Existem mulheres que começaram a não aceitar mais casamentos polígamos e começaram a enfrentar os comentários e as ameaças de serem solteiras ou divorciadas. Existem mães de homens que estão ensinando a nova geração que os homens não devem ser polígamos e nem abusivos. Existem casamentos respeitosos e sem abusos, polígamos ou não.
Ainda falta muito para melhorar e para que as mulheres realmente possam ter os mesmos direitos e respeitos básicos. As mudanças são lentas e recentes, assim como as leis que autorizam essas práticas. As mulheres começaram a soltar suas vozes. Torço para um dia ver pais responsabilizando-se por seus filhos. Torço por uma sociedade melhor para estas mulheres incrivelmente fortes e resignadas que conheci aqui.