O feminismo e Marie Curie
Um dos meus primeiros textos para o BPM falava sobre a mulher polonesa. Um texto sobre minhas primeiras impressões e sobre o que eu já sabia a respeito delas. Nele, citei uma das mais notáveis dessas mulheres polonesas – e do mundo: Maria Skłodowska-Curie, ou simplesmente Marie Curie, como é mundialmente conhecida.
Como feminista que sou – com muito a aprender, claro, gostaria de falar sobre Curie sob esta perspectiva. Esta palavra que – ainda bem – está tão em voga, ainda gera discussões, inclusive entre as próprias mulheres. Mas estamos aqui para relembrar que o feminismo não quer dividir, mas abraçar todo o imenso universo feminino como uma grande irmandade. Isso é necessário porque sabemos que as coisas nunca foram – e ainda não são muito fáceis para nós, desde sempre. Por isso é tão importante que nos unamos e sigamos juntas nessa jornada.
Então, hoje, vamos nos inspirar um pouco na história e no legado Maria e quem sabe, num futuro não muito distante, outras cientistas, pesquisadoras e Nobels mulheres surjam para o bem do mundo e da humanidade.
Polonesa na Polônia que não existia no mapa
Quando Marie Curie nasceu, em 7 de novembro de 1867, a Polônia vivia um de seus dias mais conturbados, pois gradulamente, era reincorporada ao Império Russo, perdendo seu território e sua identidade nacional.
Maria Salomea Skłodowska – seu nome de batismo – pertencia a uma família ligada à nobreza, cujos pais eram professores renomados. A mãe de Maria, Bronisława – que fora professora e dona de um importante internato para meninas à rua Freta 16, onde hoje funciona o Museu da Sociedade Polonesa de Química Marie Curie – faleceu de tuberculose quando a caçula e futura Nobel tinha apenas 11 anos de idade.
A partir daí coube ao pai cuidar dos 4 filhos (Jósef, Bronisława, Helena e Maria) e continuar a tarefa de passar aos filhos as tradições polonesas, arte, filosofia, além, é claro, o ensino do idioma. Władysław Skłodowski era professor de matemática e física, o que certamente inspirou Maria a continuar seus estudos, mesmo numa época tão difícil.
Outra perda pessoal também significativa para Maria foi, dois anos após o falecimento de sua mãe, foi a morte de sua irmã mais velha, Zofia.
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Friso este fato pois, naqueles tempos, ensinar/aprender a cultura, história e língua polonesa não era legalmente possível. A “Polônia” (então Reino da Polônia) já vinha sofrendo represálias desde o fim do Levante de Novembro de 1830-31, quando a língua russa fora implementada com segunda língua e o Ensino Superior polonês fora extinto.
O processo de “Russificação” intensifiou-se, sobretudo, após o Levante de Janeiro 1863-64 (ocorrido no Reino da Polônia e nas terras já anexadas ao Império Russo). Em 1880, ela já não era mais “usada” em escolas e locais de administração pública, o russo passava a ser a língua oficial da Polônia. A própria Igreja Católica sofrera ataques, pois era das bases para a preservação da soberania polonesa. Mesmo neste cenário, Maria concluiu o ensino secundário, e tornou-se tutora por um tempo, em Varsóvia.
Vale lembrar ainda que a família perdeu praticamente todos os bens por apoiar as causas patrióticas contra o domínio russo, sobretudo no Levante de Janeiro de 1863.
Da universidade que não existia à Paris – Curie
E por não haver universidades polonesas e pelas instituições russas não admitirem mulheres, a jovem Maria e sua irmã Bronisława só conseguiram dar continuidade aos seus estudos acadêmicos frequentando uma universidade “clandestina”, a Uniwersytet Latający, que pode ser traduzido em português como ‘Universidade Móvel” ou “Universidade Itinerante” (em inglês “Flying University”), em Varsóvia, que desafiava o Império Russo justamente por manter um currículo em polonês e por admitir mulheres. Mas como a situação era incerta, pouco depois elas migrariam para a França, como muitos poloneses – que tiveram oportunidade ou condições – fizeram.
Um fator interessante que cabe observar é a união entre as duas irmãs e um pacto de ajuda que as duas estabeleceram para si. Bronisława seguiu primeiro para Paris, aos 19 anos, para continuar seus estudos, em Medicina, na Sorbonne. Enquanto isso, Maria continuou em Varsóvia, trabalhando como governanta e auxiliando a irmã com os custos de se sua estadia parisiense, uma vez que o pai não tinha condições de ajudá-la. Bronisława formou-se ginecologista-obstetra e casou-se com o físico, ativista social e político polonês exilado em Paris, Kazimierz Dłuski.
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Maria chegou em Paris em novembro de 1891 para morar com a irmã e o cunhado. Ingressou na Universidade de Paris, prosseguindo os estudos de física, matemática e química, meio a dificuldades financeiras. Era uma das poucas mulheres na Faculdade de Ciências naquela época. Mantinha também contato com a comunidade polonesa “exilada”, participando de eventos patrióticos e mantendo a memória de sua língua e país, o que não podia fazer em solo polonês, dominado pelos russos.
Em 1892, passou a manter-se sozinha. Graduou-se em física em 1893, começou a trabalhar no laboratório industrial do professor Gabriel Lippmann, e em 1894, com uma bolsa de estudos, iniciou uma segunda graduação. Ainda naquele ano conheceu o físico francês Pierre Curie.
Neste ínterim, Maria retornou à Polônia para visitar a família e tentar ingressar na Universidade de Cracóvia “Uniwersytet Jagielloński”, uma das mais antigas universidades polonesas no mundo e que na época, junto com a Universidade de Lwów, era o centro da intelectualidade polonesa (mesmo sendo parte do Império Austro-Húngaro, possuiam certa autonomia), mas fora recusada por ser mulher.
Então, em 1895, retorna à Paris para continuar seus estudos e finalmente casa-se com Pierre Curie. A partir daí passaram a trabalhar juntos até a morte de Pierre, em 1906.
As primeiras investigações sobre a radiação (os termos radição e radioatividade foram cunhados pela dupla) se deram em 1898, junto com o físico Henri Becquerel, que descobrira o urânio em 1896 e culminaria no prêmio Nobel em 1903, quando também Maria doutorou-se em Ciências. Mais tarde, descobririam os elementos químicos rádio (Ra) e polônio (Po), em homenagem à sua terra. Marie é considerada a “Mãe da Física Moderna”, pelo seu pioneirismo nas pesquisas com radioatividade.
Pioneirismo, preconceito e escândalos
Após a morte de Pierre Curie em 1906, num acidente, que inclusive levou Marie a uma depressão, ela ocupou seu lugar, como professora de Física Geral na Faculdade de Ciências, sendo a primeira mulher a ocupar este cargo, aos 39 anos. Ocupou outros cargos diretivos, como o do Laboratório Curie do Instituto do Radium da Universidade de Paris e participou – a única mulher – das 7 primeiras edições da Conferência de Solvay, em Bruxelas.
Antes disso, também tinha sido a primeira mulher a fazer parte do corpo docente da Sorbonne, quando, aos 33 anos, tornou-se professora secundária na instituição, trazendo algumas inovações para à área que lecionava. Tornou-se Alma Matter da Sorbonne, e mais tarde, após a divisão da Universidade de Paris, em 1971, a Universidade passou a ser chamada de Universidade Pierre e Marie Curie (UPMC), conhecida também como Paris 6.
Marie também foi a primeira e única mulher laureada com o Nobel 2 vezes. Em 1903 recebeu o Nobel de Física, juntamente com Pierre Curie e Henri Becquerel pelas pesquisas conjuntas sobre os fenômenos da radiação e em 1911, o de Química, pelo isolamento do rádio e os estudos da natureza dos compostos deste elemento. Sua contribuição foi além, ao não patentear o processo de isolamento do rádio, permitiu que a investigação de suas propriedades fosse feita por toda a comunidade científica.
Porém, como na vida da maioria das mulheres do mundo, a sociedade patriarcal vai tentar – em algum momento – desqualificar e desviar o foco do que realmente importa para algo que venda jornais ou seja polêmico, simplesmente pelo fato de tais feitos forem realizados por uma mulher.
Houve polêmicas com relação ao fato de Maria ter renunciado sua nacionalidade polonesa e tornado-se francesa, mas o fato é que ela carregou seu nome polonês após o casamento, sendo Skłodowska-Curie.
Houve resistência quanto à sua candidatura à Academia Francesa, quando a imprensa marrom francesa de direita da época chegou a fazer ataques racistas, justamente por sua origem polonesa. Outro fato que causou certa polêmica, no final de 1911, foi o suposto envolvimento de Curie com o físico francês Paul Languevin – que fora, inclusive orientador da primogênita de Marie, Irène – e que era casado na época. Apareciam, inclusive, “acusações” por parte da imprensa anti-semita, de que ela era de origem judia.
Tais notícias ganhavam notoriedade (assim como ainda nos dias de hoje) talvez por ser a única mulher num círculo exclusivamente masculino? Sim, talvez.
I Guerra Mundial, últimos anos e legado
Durante a Primeira Guerra Mundial, Marie destacou-se pelo seu espírito humanitário, interrompendo (obviamente) suas pesquisas, para ajudar nas frentes que recebiam os soldados feridos da guerra, criando centros radilógicos móveis (conhecidos como petites Curies) para que os soldados fossem operados o mais rápido possível. Marie tornou-se diretora do Serviço de Radiologia da Cruz Vermelha e criou o primeiro centro de radiologia militar da França, operacional no final de 1914. Mesmo com suas grandes contribuições humanitárias, nunca recebeu um reconhecimento do governo francês. Ao contrário, para ajudar os esforços de guerra chegou a tentar doar seus prêmios e medalhas, que foram recusados.
Após o final da Primeira Guerra Mundial, continuou até sua morte seus esforços para arrecadar fundos para suas pesquisas com o rádio. Sua primeira filha, Irène Joliot-Curie, também recebeu em 1935, juntamente com seu marido, Frédéric Joliot-Curie, o Prêmio Nobel de Química, pela descoberta da radioatividade artificial. Seu livro “Radioactivité” publicado postumamente é considerado uma das bases dos estudos à radiotividade clássica.
Por fim, Maria, morreu aos 66 anos, em 1936, de anemia aplástica, devido a constante exposição à radiação durante suas pesquisas. Somente em 1995 teve seus restos mortais trasladados para o Panteão de Paris, sendo a primeira mulher – e não francesa – enterrada lá.
Que surjam outras Curies
Que história, não? Quantas mulheres, guardadas as devidas particularidades e circunstâncias e tudo mais que nos fazem únicas, obviamente, não passou, passa ou passará por dificuldades desde o nascer, pelo fato de serem apenas mulheres?
Minha mensagem aqui é, com o exemplo desta grande polonesa, que possamos dizer para nossas meninas, as futuras gerações, que podemos fazer tudo o que quisermos, por mais que o mundo patriarcal insista em nos colocar em certas posições, representando certos papeis, tentando nos calar, por dizer que somos o “sexo frágil”. Digo que frágil é o mundo e a estrutura patriarcal que não está preparado para as vozes que ganham cada vez mais espaço.
Um exemplo de união e força que veio à mente foi ter visto, em 2016, uma série de protestos contra a mudança da lei em que o aborto é permitido aqui na Polônia. Foi impressionantemente lindo ver a força que tem as todas as mulheres unidas, quando lutamos por algo para nós. São várias lutas, várias demandas, mas devemos aprender a respeitar e apoiar todas elas, sem julgamentos ou críticas. Entender isso é o primeiro passo para nos fortalecer.
E é inspirada na força dessas mulheres, não apenas as polonesas, mas as do mundo todo, e também na história de Marie Curie, que termino este texto, mas não nossas histórias.
Deixe aqui nos comentários um exemplo de uma mulher – famosa ou não – que a tenha inspirado ou influenciado. Quais são seus sonhos? Aonde você deseja chegar?
E sobre o feminismo? O que você espera para todas as mulheres?
Beijo e abraço fraterno a todas!