Por que a Espanha não consegue controlar a pandemia?
Quando a Espanha estava próxima a deixar o estado de alerta, escrevi um texto aqui no Brasileiras Pelo Mundo elogiando o empenho dos espanhóis no combate ao COVID-19 e ao confinamento involuntário. Acredito que me precipitei, pois foi só o verão chegar efetivamente para que os cidadãos esquecessem a pandemia e se libertassem.
Estavam errados? Não, se apenas pensarmos no tempo de restrições abruptas que tivemos e no sentimento de ser cerceado em nosso direito supremo de liberdade de ir e vir. Mas se olharmos para o futuro e refletirmos sobre os efeitos amplos de um ato assim, podemos, em partes, explicar a alta taxa de contaminação na Espanha.
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Com certeza, esta não é a única justificativa para que faz da Espanha a líder europeia em números de contágios. Especialistas e leigos apontam outros várias motivos, quando na realidade não há um consenso do que leva o país a ser tão ineficaz no controle.
Outro ponto importante é a diferença de contaminação por regiões: por que uns conseguem manter um número razoável de novos contágios, voltando a zona laranja e outros tantos permanecer na zona vermelha e em plena ascensão?
Hoje, além do COVID-19 ser uma questão de saúde pública, virou uma batalha partidária e um buraco negro econômico. Aquele joguinho de prioridades e certezas que vemos em outras nações, está causando uma indigestão coletiva.
Caráter Social: o uso das máscaras
Por aqui utilizamos razoavelmente bem as máscaras, apesar de uns ainda acreditarem que não precisa posicioná-la no nariz ou que para falar é necessário retirá-la. Em lugares abertos é mais bem aceito e assimilado, com exceção de jovens e adolescentes que insistem em considerá-la out fashion e sem sentido e dos inúmeros movimentos negativistas.
Andar pelas ruas, parques e até mesmo na praia com máscaras já se tornou costume, porém em espaços fechados, cheio de gente, com menor distanciamento, onde realmente é eficaz o seu uso, não é igual.
Segundo pesquisadores, é um disparate usar as máscaras em locais abertos e não mantê-las em lugares fechados, como ao entrar nos restaurantes, bares e até nas casas que não é o nosso habitat.
Os três traiçoeiros “F” (festa, família e falência)
Os espanhóis são um povo de costumes sociais, assim como nós, adoram as festas e reuniões familiares. Estar entre muitos (e gritando) é o maior prazer e, depois de um confinamento, esta necessidade ficou ainda mais aflorada; uma espécie de viver uma vida inteira em um dia único.
As principais fontes de contágios são as reuniões familiares e de amigos. O lazer noturno, durante o verão, também foi um dos pontos centrais de contaminação. Festas de formatura, happy hour, bebedeiras em grupo nas ruas…tudo é um bom motivo para se reunir.
Ao contrário de outros países como França e Alemanha, que mantiveram as discotecas fechadas durante o verão, a Espanha escancarou e, mesmo com a obrigatoriedade de uso de máscaras e limitação na entrada de pessoas, foram os focos de rebrotes.
Os jovens que saem para se divertir à noite, logo voltam para casa e continuam a manter um contato direto com os familiares. Contaminação certeira. Contaminação disparada.
Não houve prevenção!
Outro ponto forte são as trocas de beijos e abraços entre familiares e amigos, mesmo não sendo permitido, a tradição e o fervor sobrepuseram. Além disso, os avós espanhóis voltaram a manter contato constantes com os netos, pois 17% deles são os responsáveis pelos cuidados das crianças enquanto os pais trabalham.
O terceiro F, é justamente a falência da reabertura do país em princípios de julho. Mesmo que tenha sido uma medida para tentar reativar a economia do país, especialistas consideram que foi precipitado. Impulsionaram o turismo interno para não perder a temporada e assim produziu-se mais mobilidade.
Não houve prevenção! Era sabido que haveria uma segunda onda mas acreditou-se que tratava-se de um vírus sazonal e que a situação permaneceria tranquila até o outono. Não havia uma resposta preparada pra esta nova leva de contaminação: sem testes suficientes, sem rastreadores, nem a confiança na população.
A desorganização política na Espanha
Diante do crescente número de novos casos na Espanha, especialmente em comunidades como Madri, Catalunha, Andaluzia e Castilla y Leon, Presidente do Governo, partidos de oposição e presidentes de comunidades estão em constante e acaloradas discussões sobre as medidas a serem tomadas.
Além da inexplicável discussão partidária, com muita troca de acusações e pouca efetividade de decisões e consenso (o cenário se repete), há as correntes que colocam a economia a frente da saúde.
A economia espanhola entrou em um recesso brutal e principalmente os ramos de turismo, hotelaria e lazer estão com déficits gigantescos, porém uma abertura de estabelecimentos e fronteiras desenfreada e sem cuidados, descontrola a contaminação de COVID-19 no país.
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Recentemente a comunidade cientifica e de saúde espanhola enviou um manifesto ao Governo para que cessem o confronto politico e mirem uma gestão da pandemia baseada apenas em critérios científicos.
Os especialistas afirmam que a lentidão burocrática em resolver assuntos legais, técnicos e administrativos só está agravando a situação. Pedem que os políticos aceitem que para enfrentar a crise devem basear-se na melhor evidencia cientifica disponível e desligar por completo do continuo enfrentamento politico.
A propagação das fake news e a acusação aos médicos
Depois que a rede divulgou a plataforma “Médicos pela verdade”, que defendem que o uso de máscaras podem gerar doenças respiratórias, centenas de pessoas estão participando de manifestações contra o seu uso obrigatório e chamando de farsa toda a pandemia.
Além disso, uma outra campanha perfeitamente orquestrada para saturar o sistema de saúde, reivindica que as equipes de saúde não autorizam a isenção do uso da máscara para pessoas que não tenham patologia justificativa.
Vários médicos na Espanha estão sendo assediados por pacientes que exigem certificados que o eximem do uso obrigatório das máscaras, isso porque há uma cláusula no Decreto sobre medidas urgentes em face da pandemia, que deixa claro que a obrigação da máscara “não será aplicável para pessoas que tenham qualquer tipo de doença ou dificuldade respiratória que possa ser agravada pelo uso da máscara”.
Lições aprendidas com a pandemia na Espanha
Ou seja, os médicos além de exauridos pelo excesso de trabalho e infinitas jornadas, estão atados a cumprir sua função de salvar vidas e prevenir a contaminação, frente a uma brecha na lei.
Outro efeito das fake news são os recorrentes insultos à médicos por negarem facilitar o certificado “de isenção” à pacientes que não querem usar as máscaras, alegando, por exemplo que o seu uso cria ansiedade e sufocamento, sem patologias comprovadas. Uma sucessão de agressões, intransigências e insultos.
Seja por falta de preparação para uma pandemia, seja por uma reação tardia das autoridades, seja pelos altos índices de mobilidade e migração, má coordenação entre as autoridades ou pouca confiança nos conselhos científicos, o que importa é que os espanhóis retomem a conscientização individual para um bem coletivo e continuem a buscar uma solução conjunta para, no mínimo, cessar novas contaminações.