Na entrevista de hoje, converso com a Natasha Rocha, advogada tributarista e consultora financeira nos Emirados Árabes. A Natasha tem uma empresa que oferece vários serviços aos residentes do país, como previdência privada, saída definitiva do Brasil, planejamento de imposto de renda, seguro de vida, investimentos em geral, propriedades, testamentos e tutela ou guarda.
Especialmente esses últimos tópicos, sobre testamentos e tutelas, há muitas dúvidas e preocupações entre os moradores daqui. Tal comportamento é justificado pela diferença em relação às leis que regem esses assuntos no país em que residimos. E, por mais que gostaríamos de acreditar que não precisamos pensar no assunto, já tivemos casos de brasileiros aqui que passaram por maus momentos quando um ente querido faleceu e não deixou um testamento.
Por isso, convidei a Natasha, uma profissional da área e especialista no assunto, para explicar melhor sobre esse tema. Espero que leiam com atenção, buscando se informar melhor, e tomem as devidas providências, caso ainda não as tenham tomado.
BPM – Fale sobre a atuação da Sharia na vida dos brasileiros que trabalham nos Emirados Árabes.
Natasha – As leis locais refletem cultura e tradição e são baseadas na Sharia islâmica. Muitos expatriados se mudam para o exterior, inconscientes do fato de estarem sujeitos às leis do país em que vivem. As questões de herança para os muçulmanos são tratadas de acordo com a Sharia, enquanto que para os não-muçulmanos, a lei da nacionalidade do falecido pode ser aplicada se um Testamento for feito formalmente.
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Nos Emirados Árabes Unidos (EAU), é possível que os expatriados não muçulmanos peticionem para que as leis de seus países de origem sejam aplicadas pelos tribunais dos EAU. No entanto, na prática, as leis estrangeiras raramente são aplicadas para os pedidos judiciais impugnados. Um juiz pode decidir se as leis estrangeiras devem ser aplicadas, e aplicará as leis locais dos EAU, onde as leis estrangeiras não podem ser prontamente interpretadas. Todas as leis estrangeiras a serem aplicadas devem ser traduzidas para o árabe antes de serem apresentadas ao tribunal (disposições legais e jurisprudenciais). Esta é uma tarefa onerosa, com o risco de que o verdadeiro significado das leis seja perdido na tradução.
Comumente, os expatriados não terão jurisdição para lidar com assuntos referente a menores de idade no tribunal de seus países de origem e não têm outra opção além de usar o sistema legal do país em que residem atualmente. No caso de uma disputa, os expatriados são muitas vezes surpresos que as leis locais se aplicam a eles. A Sharia pode afetar a sua vida em 2 aspectos principais:
- Finanças:
Se alguém morrer enquanto residente nos EAU, a Lei da Sharia será aplicada a quaisquer ativos que sejam mantidos no país. Se uma esposa morre todos os seus bens irão reverter para o marido, mas se o marido morrer é uma história completamente diferente. Qualquer banco e conta corrente em seu nome ficaria congelada, mesmo aquelas em nomes conjuntos. Além de contas bancárias serem congeladas em caso de morte de um marido, se algum veículo estiver em seu nome, é provável que sejam confiscadas até que os tribunais tomem uma decisão sobre ativos. Para imóveis será o mesmo.
No devido tempo, os ativos serão distribuídos pelos tribunais de acordo com a Lei da Sharia e isso pode levar semanas, ou mesmo meses, embora não haja prazos fixos. Ouvi falar de casos em que as contas foram congeladas há mais de um ano antes de serem reabertas. Considerando que os vistos dos dependentes poderiam ser cancelados após 30 dias, muitos dos beneficiários nem sequer estão no país para lidar com esses assuntos.
A forma mais simples de evitar problemas e burocracias desnecessárias é mandar seus ativos para o exterior. Como expatriado, isso não significa necessariamente mandar para o Brasil, visto que você pode ter contas de investimentos em qualquer lugar do mundo, por exemplo UK e USA com maior segurança e em ambiente políticos mais estáveis.
- Guarda de filhos:
Diante de falecimento do marido, se a lei da Sharia for aplicada ou o juiz entender que a mãe não tem condições de cuidar dos filhos, não necessariamente os filhos ficam sobre a tutela da mãe, situação que não é muito comum, mas devido a seriedade, deve ser tratada e um testamento ou documento de guarda deve ser elaborado.
BPM – Quais são as implicações de se viver no país sem um seguro de saúde, seguro de vida e testamento?
Muitas vezes, na mudança para os Emirados, um dos cônjuges acaba não tendo trabalho e depende do outro para a renda da casa. Em caso de falecimento, se não possuir um seguro de vida em valor satisfatório, poderá ter grandes problemas para se reerguer no futuro, considerando que precisará de tempo e fundos para se recolocar no mercado de trabalho. A maioria dos expatriados possuem um nível de seguro de vida oferecido pela empresa, mas geralmente os valores são muito baixos e muitas das pessoas nem sabem o quanto receberiam. Seguro de vida complementar e boa cobertura médica são primordiais aos expatriados.
O testamento vai proteger os seus bens locais e neste, você pode indicar quem seriam os guardiões de seus filhos em caso de falecimento. O testamento pode ser feito no DIFC ou Dubai Courts. O testamento do DIFC é o mais indicado pois baseia-se em princípios de “common law” (adotada no Reino Unido), segundo os quais um testador tem liberdade para dispor de sua propriedade, em vez de estar sujeito a quaisquer regras legais específicas em matéria de distribuição ou regime de herança forçada.
O atual dilema da legislação contraditória, em que se trata de questões de herança, juntamente com a incerteza jurídica das vontades de expatriados e a discrição de tribunais na aplicação da Lei da Sharia (quando consideram apropriado) é um grande problema do testamento que não é feito no DIFC. Para evitar longas e dispendiosas batalhas nos Tribunais, bem como o risco de ser contestado e as leis de herança conflitantes, muitos expatriados transferem seus ativos para estruturas offshore.
As questões de tutela para os pais que têm filhos menores que residem nos EAU são um medo comum. E a distribuição fixa de ativos de acordo com a lei dos EAU e o congelamento de contas bancárias, por exemplo, tendem a tornar os expatriados desconfortáveis na retenção de fundos levando-os a transferir fundos para o exterior e fora dessa jurisdição.
BPM – Como os brasileiros podem se assegurar de que, caso alguma tragédia aconteça, seus familiares sejam amparados?
Através de um testamento e um planejamento financeiro robusto (incluindo seguro de vida, guardar para a faculdade dos filhos e planejamento de aposentadoria). Esta análise da proteção é muito individual e vai de pessoa para pessoa, mas todos devem ter algum tipo de planejamento, visando guardar ao menos 30% da renda mensal.
BPM – Quais seriam, na sua opinião, as grandes diferenças entre o processo de testamento e inventário nos EAU e no Brasil?
O processo de inventário em ambos os lugares é bastante moroso e caro. A diferença maior é o regime jurídico aplicável aos dois países. Muitos problemas podem ser evitados através de uma estruturação de herança, na qual podemos otimizar a transferência dos bens ganhando em imposto e tempo. Tal estruturação é bastante particular e vai depender de quais bens a pessoa possui, mas é possível sim, facilitar a sua vida e de sua família.
BPM – Como a sua empresa pode ajudar os brasileiros que desejam se precaver contra eventuais tragédias? E quanto aos que já tiveram a tragédia em suas vidas, há algo que vocês possam ajudar?
Atualmente ajudamos os clientes na estruturação financeira e tributária, previdência privada e investimentos no exterior, elaboração de testamentos e documentos de guarda. Para os clientes que já passaram por tragédia, oferecemos todo o suporte emocional e encaminhamos para os advogados locais para realizar os procedimentos cabíveis.
Esse artigo é meramente informativo. Você deve consultar o profissional local para verificar as suas necessidades específicas.