Será que existe muito machismo na Argentina? Vamos ver.
Uma líder indígena está presa há dois anos e meio por participar de um protesto pacífico. A ex-presidente até hoje é chamada por muitos de yegua (que quer dizer égua, mas que significa mesmo é “vaca”.) Uma amiga magrela minha ouvia do namorado que não era bonita porque não era magra como as modelos. Eu sofri violência obstétrica no meu primeiro parto. A namorada de um amigo fugiu de dois homens que tentaram raptá-la em um bairro de classe média alta. Uma amiga foi abordada por uma possível rede de tráfico de mulheres na fila de um banco. A amiga de uma amiga foi drogada no banheiro de uma boate por mulheres também provavelmente ligadas a redes de tráfico. Uma mulher foi condenada por homicídio por ter sofrido um aborto espontâneo em um hospital. Uma menina de 13 anos foi abusada sexualmente quando voltava da escola, de novo em um bairro de classe média alta. Uma menina de 10 anos foi estuprada, engravidou e lhe foi negado o direito de interromper a gravidez. Uma deputada declarou, em sessão, que a mulher não deve ter plenos direitos sobre seu corpo. Eu já ajudei a dar suporte a três mulheres vítimas de violência física – uma delas tinha sido desaconselhada a fazer B.O. pelos próprios policiais que atenderam a ocorrência. Uma mulher que matou o namorado há oito meses já foi condenada – a prisão perpétua. No dia da condenação dela, o assassino de uma menina de 15 anos foi solto – por um tecnicismo. Nos primeiros 5 meses deste ano, houve 114 feminicídios no país.
Tudo bem que moro aqui já faz 20 anos, mas isso não torna menos alarmante o número de casos de violência contra mulheres que sou capaz de citar assim, sem sequer pesquisar. O machismo nosso de cada dia está firme e forte na Argentina. E, claro, é constantemente justificado e negado, inclusive por muitas mulheres. Do assédio na rua à violência física e psicológica, da imposição de ideais estéticos insanos à desigualdade de oportunidades profissionais e salariais, imagino que o país não difira muito do perfil da América Latina e de tantos outros países ditos em desenvolvimento.
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A construção social da desigualdade de gênero começa na infância. Há poucas lojas de brinquedos que não separam brinquedos “de menina” (tudo em pink e roxo, quase tudo para uma pequena dona de casa) e “de menino” (brinquedos coloridos, apesar da predominância do azul, e com muito mais variedade e possibilidades). Já presenciei uma comemoração do dia dos professores em que as professoras mulheres desfilavam fantasiadas e os únicos três professores homens assistiam, sentados e davam notas. Existem salões de festas infantis onde meninos e meninas passam a tarde separados: eles vão jogar futebol e elas vão para o mini-spa. E quando eles se comportam mal, a ameaça é vesti-los de mulher. Quer dizer, se começamos assim, o primeiro parágrafo deste texto nem surpreende tanto.
Uma realidade alarmante
Uma mulher morta a cada 30 horas é um número bastante expressivo. Talvez os números percentuais sejam semelhantes ou até inferiores aos do Brasil, mas de alguma forma os feminicídios na Argentina parecem se multiplicar com uma velocidade aterradora. Me lembro de ver, no ano passado, um “calendário” com os nomes das mulheres mortas ou desaparecidas só no mês de abril. Havia poucos dias em branco, havia vários dias com mais de um nome.
Os desaparecimentos infelizmente levam a duas prováveis conclusões: ou aquelas mulheres foram mortas ou foram sequestradas para serem vendidas como escravas sexuais. Parece incrível, mas as redes de tráfico de mulheres são uma terrível realidade no país. O caso de Marita Verón, uma mulher de 23 anos sequestrada e vendida (como dói escrever esse verbo) em 2002, é emblemático. Ela nunca mais foi encontrada – mas a luta de sua mãe, Susana Trimarco, deu visibilidade à situação e, através de sua fundação, milhares de mulheres já foram resgatadas de situações de prostituição forçada.
Onda roxa, maré verde
O lado bom, de certa forma, é que o aumento na percepção ou na divulgação dos casos de violência contra mulheres deu início a um movimento maravilhoso e que vem ganhando força. O Ni Una Menos (Nem Uma a Menos) começou em 2015 como uma marcha autoconvocada para protestar contra tantos feminicídios e, se articulando com outros movimentos, acabou criando uma onda feminina e feminista com cada vez mais adesão.
Um dos espaços mais antigos e mais importantes de articulação feminina aqui na Argentina é o Encontro Nacional de Mulheres, que acontece anualmente desde 1986, passando por diferentes províncias do país. A 33ª edição do encontro vai ser em outubro, na cidade de Trelew, na Patagônia.
A confluência desses movimentos e das reivindicações das mulheres ganhou um impulso forte e vem mobilizando cada vez mais pessoas, de cada vez mais setores da sociedade. Nos últimos meses, Buenos Aires foi tomada pela “maré verde”, assim chamada por causa do lenço triangular verde que identifica as mulheres (e homens) a favor do direito de interromper uma gravidez. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito engajou uma parcela enorme da população no debate pelos direitos reprodutivos das mulheres e pelo fim dos abortos clandestinos.
O lenço, em si, já fazia parte da história argentina – “pañuelos” brancos amarrados à cabeça simbolizam até hoje as Mães da Praça de Maio, mulheres que lutam por justiça para seus filhos e filhas assassinados durante a cruenta ditadura do país. Agora verdes, os lenços reaparecem amarrados no pescoço, nas alças de bolsas e mochilas ou nos pulsos e, além de revelar uma posição ideológica, mostram claramente o tamanho e a força da união das mulheres, e a nossa capacidade de criar uma onda que um dia será mais forte do que o – histórico, ultrapassado e injustificável – machismo.
3 Comments
Olá Patricia! Texto super bom e impactante. Somente falando muito sobre o assunto vamos trazer luz a essa realidade tão cruel e quem possivelmente diminuir este crime.
Olá Alessandra! Infelizmente essa é uma realidade tenebrosa mesmo. Mulheres sendo traficadas e exploradas. Mas e a violência urbana? Roubos, latrocínio, medo de sair como temos no Brasil. Isso acontece na Argentina? Só em alguns lugares?
Olá André,
A Patricia Souza parou de colaborar conosco, mas temos outras colunistas na Argentina que talvez possam te ajudar.
Você pode entrar em contato com elas deixando um comentário em um dos textos publicados mais recentemente no site.
Obrigada,
Edição BPM