Vida no exterior e a arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Quando me perguntam como é viver tão longe, tenho vontade de dizer que é como ser um morto privilegiado. Enquanto todos os outros mortos não possuem acesso aos vivos, talvez com exceção dos mais sensitivos, nós, mortos privilegiados, desaparecemos das vistas de todos, sumimos de nossas casas, não somos mais vistos nas ruas, mas ainda estamos lá, fazendo contato com o mundo que ficou para trás.
Essa expressão, “morto privilegiado“, pode ser uma expressão forte. Porém, retrata bem a arte de ser fantasma, de estar presente em espírito, de aprender a estar em dois lugares ao mesmo tempo. É ficar de plantão, na frente do computador, a qualquer hora, para não perder aquela festa de aniversário do pai, ou a formatura da amiga. É acordar no meio da madrugada só para estar presente na apresentação de mestrado da irmã.
É se virar ao avesso para viver duas realidades, estar aqui e lá ao mesmo tempo e ainda ficar de coração partido ao ouvir a mãe dizer “Mais um aniversário sem aquele abraço”. Quem nunca viveu essa experiência costuma pensar que é tudo um mar de rosas. Novas experiências, novas amizades, novas culturas. Há sim, muita coisa boa que se conquista, muita coisa boa que se aprende e muita coisa boa que fica para trás.
A arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo as vezes se resume no retrato do desespero e do esforço para estar aqui e não perder o lugar quentinho que você deixou lá, na sua terra natal. É o esforço para manter as amizades sem estar mais presente na vida das pessoas, para manter o seu quarto na casa dos seus pais, as suas coisas cheias de lembranças, o berço da sua história de vida.
Uma vez eu li uma coluna, aqui no Brasileiras Pelo Mundo, em que a colunista falava sobre uma situação em que, de início, voltava para a casa e era recebida com festa, uma agenda cheia de encontros com amigos, família no aeroporto, todas as atenções. E, depois de vários anos, os encontros deixaram de ser marcados, as festas cessaram, as buscas no aeroporto desapareceram.
Quando eu li esse relato (não lembro agora quem foi a colunista), senti um aperto no peito. O pânico de um dia deixar de ser uma morta privilegiada, para ser tratada como uma morta de verdade e existir apenas aqui, no Japão, no local onde eu renasci, no país onde tive que levantar cada tijolo para construir a minha vida. Tenho muito orgulho de estar aqui, muito orgulho das coisas que construí, das coisas que conquistei, equilibrando um tijolo de sonho em cima do outro, ao longo de muito tempo. Porém, não abro mão da arte de fincar um pé aqui e outro lá no Brasil e garantir que o meu espaço existirá onde eu deixar o meu rastro.
A gente pode virar esse mundão, morar em vários países, aprender tudo que tem direito nessa vida. Mas o nosso berço vai ser sempre especial, como o útero aconchegante da mãe que nos formou, o lugar que sempre queremos dizer que foi e que é nosso. E manter esse berço vivo ao longo dos anos, não ser esquecida, não ser deixada para trás e se perder na poeira do tempo, é um esforço de cada dia.
É claro que a sua família nunca irá te esquecer, embora já tenha ouvido histórias de pessoas aqui mesmo no Japão, que contam com tristeza que depois de muitos anos, quando voltaram ao Brasil, já não encontraram as coisas que deixaram, viram que o rastro foi apagado, o berço foi despedaçado. Porém, para garantir que o seu lugar sempre será seu, é preciso sim aprender a viver em duas realidades, estar com os pés no chão e o espírito no outro lado do mundo.
Como essa é a última coluna desse ano e 2020 está logo ali, vou terminar esse texto revelando uma poesia que escrevi esse ano. Descobri na poesia uma maneira de lavar a alma, aliviar a inquietude interna e encontrar a paz de espírito. Essa poesia, escrita em abril desse ano, retrata bem esse sentimento de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Espero que gostem! E para todos que acompanharam a minha coluna ao longo do ano, deixo meus sinceros agradecimentos e desejo um ótimo fim de ano!
DUAS DE MIM
Quando se escolhe viver longe
A gente aprende como os monges
A ter o dom da paciência
Amor e resiliência
Para estar em um lugar
E deixar o coração voar
Muitas milhas além do mar
Quando deixamos a nossa terra
Escolhemos viver com o coração em guerra
Um lado quer explorar o mundo
O outro, por apenas um segundo
Quer um colo de mãe, um carinho profundo
Estar aqui e lá é uma arte
O corpo na Terra, o espírito em Marte
A alma cansada de ser cortada como um tomate
Mas antes ser duas de mim
Do que apenas uma metade.
1 Comment
Que linda poesia!! Parabéns!